Depende de de qual grau de verdade você
deseja: os milicianos que estavam no carro, apenas aquele miliciano que puxou o
gatilho; Temer e os “golpistas”;
ou, ainda, o sistema do capital como um todo.
A execução de Marielle
é uma decorrência
direta da crise geral em que vive o país. A munição
utilizada, as pessoas envolvidas, o “método”
da execução, as circunstâncias de sua eleição
e de suas denúncias contra os “milicianos”,
a forma com se desenrola o post-festum
(a política federal cede lugar para a política
militar, Temer cancela viagem ao Rio para não ser hostilizado, Rodrigo
Maia posa de defensor de uma investigação séria,
Pezão fica calado no calabouço do
Palácio do Catete, a forma da cobertura jornalística
da Globo, do Estadão e da Folha de São Paulo, a reação
do PT, do PSOL e do PCB etc.) – tudo se articula muito
intimamente com os fundamentos da crise em que estamos engolfados. Portanto...
… de onde vem a crise?
De novo: qual o grau de verdade desejado? De fato, vem desde
abril de 1500, quando Cabral aportou na Bahia. O Estado burguês
chegou no Brasil antes que aqui houvesse qualquer burguesia, o capitalismo aqui
chegou pelas mãos da burguesia europeia e as nossas classes
dominantes desde sempre foram sócias minoritárias
na exploração dos trabalhadores.
A forma de exploração da força
de trabalho, as instituições político-jurídicas
e ideológicas que dela brotam etc. variam com o tempo –
segundo as necessidades do capital internacional, predominantemente e,
secundariamente, segundo as necessidades das classes dominantes brasileiras.
Nessa história, o Estado tem um peso descomunal. Pois, como a
mediação política da direta subordinação
das classes dominantes locais ao capital internacional, termina sendo importantíssimo
na organização da economia. As suas “políticas
econômicas” têm um
papel central na produção de riqueza. Para citar
alguns exemplos: o episódio Delmiro Gouveia no Segundo
Império, a política de socialização
das perdas na República Velha, os investimentos getulistas na
infraestrutura como a Petrobrás e a CSN, os “50
anos em 5” de Juscelino, o financiamento estatal para a
entrada das multinacionais no país e para a concentração
de terras no período da Ditadura Militar para culminar, no período
petista, no assim dito “desenvolvimentismo lulista”.
O estamento burocrático-político
Como resultado desse papel do Estado na economia,
desenvolveu-se um estamento burocrático encastoado nas altas
esferas estatais e nas altas esferas da política que tem um peso econômico
e político que, se varia segundo o período
histórico, tem sido sempre muito grande.
O funcionamento desse estamento político-burocrático
está, hoje, escancarado. Os casos da Odebrecht e da JBS
são
típicos.
O toma-lá-dá-cá
entre esse estamento e o capital privado, milhões em corrupção
é
a contrapartida da transformação desses empresários
de nacionais em “multinacionais” graças
aos financiamentos ajeitados pelo estamento burocrático-político.
Do “outro lado”, amealha-se a fortuna de milhões
do filho de 7 anos de Temer! O pagamento de propinas se tornou tão
organizado e racional que a Odebrecht criou até mesmo um departamento para
cuidar das mesmas, o famoso “Departamento de Operações
Especiais”. Estradas, dormitórios e estádios
para as Olimpíadas ou Copa do Mundo, compra de material didático
ou de remédios, merenda escolar ou equipamento bélico
-- tudo é “azeitado”
pelas propinas, pela corrupção.
Hoje, em meio à crise, é
possível delimitar os contornos desse estamento político-burocrático
até
os seus integrantes mais importantes: no Congresso, na ala mais tradicional,
temos Cunha, Sarney, Jucá, Temer, os Maia (pai e
filho), Moreira Franco, Carlos Marun ao lado dos novos integrantes, Lula, Aécio
Neves, Genoíno, José Dirceu, Dilma, Garotinho,
Cabral etc.; do lado do Estado, Guido Mantega, Palocci, Paulo Bernardo, Paulo
Rabelo de Castro, Armínio Fraga, Graça
Foster, a alta burocracia do BNDEs, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica,
dos Fundos de Pensão, do Banco Central etc. Com uma vasta ramificação
que passa dos centros decisórios nacionais aos Estados e
Municípios.
Essa ramificação se generalizou. Em plena “farra
dilmista”, até a liberação
do pagamento para as empreiteiras locais da construção
das “minha casa, minha vida” em cidades pequenas dependia
de pagamento de um “agrado” ao
gerente da Caixa Econômica local! A construção
da infraestrutura para as Olimpíadas e a Copa do Mundo,
programas como “minha casa, minha vida” etc. possibilitaram a esses
ramos mais distantes de Brasília acesso a um volume de
corrupção que nunca tinham antes visto –
exemplar, nesse processo, é o caso do Rio de Janeiro. O
poder econômico e político do estamento burocrático-político
nunca foi tão forte e ramificado pelo país
afora.
Esta situação só se
tornaria um problema depois que a crise de 2008. Mas, até lá,
não
se reclamava nem da corrupção
nem da bandalheira”.
A genialidade política de Lula
Desde os últimos anos dos governos FHC,
o Brasil foi se tornando um dos mais lucrativos investimentos para o grande
capital. Com um governo “confiável”,
uma classe operária “dócil”,
uma vasta força de trabalho desempregada e submetida a uma elevada
taxa de exploração e, além disso, com matérias-primas
baratas e abundantes, energia subsidiada pelo Estado, terras virgens ainda a
serem ocupadas etc. – com tudo isso o Brasil se
converteu em um dos investimentos preferidos do grande capital financeiro.
A entrada desses capitais fez a festa dos governos petistas.
Eram os anos em que planejavam permanecer no poder até 2028
(Lembram-se do plano? Depois de um governo Dilma, mais dois governos Lula?).
Foi o apogeu do “desenvolvimentismo petista”:
estradas, casas, usinas hidroelétricas, biocombustíveis,
pré-sal,
etc. Com duas consequências. A primeira, o apoio
incondicional da parcela da burguesia que se locupletava (os Odebrechts da
vida) e, a segunda, a adesão ao bloco petista da parte
majoritária e mais forte do estamento político-burocrático
que mencionamos acima. As propinas que as inversões do Estado propiciavam
comprariam a adesão desse estamento aos petistas. Cunha, Temer, Renan
Calheiros, Jucá, Sarney, os Maia (do Rio), Collor etc. passam a
descobrir as virtudes dos petistas. (Tal como hoje Paulo Paim, deputado federal
pelo PT, reconhece hoje os méritos de Collor).
O restante da burguesia, ainda que não
diretamente favorecida pelos investimentos estatais, também
apoiava o governo petista, por duas razões. A primeira, porque o
aquecimento da economia também aquecia seus negócios.
A segunda, porque isenções e mais isenções
de impostos impulsionavam indústrias chaves, como a
automobilística e a da “linha branca”
(geladeiras, fogões etc.), a extração de minérios
e a exportação de matérias-primas e assim por
diante.
Como bem-vindo efeito colateral desse toma-lá-da-cá,
o aquecimento da economia gerava empregos e melhorava a sorte de setores
significativos da classe média. O bolsa-família
e programas congêneres davam a impressão –
falsa impressão – de uma distribuição
de renda. O aumento dos salários dos professores universitários
comprou o silêncio, quando não o apoio entusiasta, desse
importante setor “formador de opinião pública”,
etc., etc.
Foi assim que Lula se tornou o preferido de Obama, do
conjunto do capital, do agronegócio e do conjunto dos
trabalhadores. Era uma unanimidade nacional! Como duvidar que esse “simples
operário” fosse, de fato, um “gênio
da política”, um “estadista
de porte internacional”?
Foi nesse clima de “felicidade geral”
que os petistas acrescentaram ao estamento político-burocrático
uma sua contribuição específica: a burocracia sindical. A
aristocracia operária, base social e política da burocracia sindical,
passou a ser sócia minoritaríssima na repartição
da corrupção. Milhares de cargos para sindicalistas foram
criados no Estado, os fundos de pensão passaram a ter nos
sindicalistas diretores e dirigentes de peso, foi retirada a fiscalização
do TCU das contas das centrais sindicais e, então, a farra sindical com
dinheiro do Estado se tornou oficial.
Tudo parecia indicar que a estratégia
petista daria certo: nada ameaçava a permanência
de Lula em Brasília por mais tempo que Getúlio
Vargas no Catete.
A crise de 2008 pôs tudo a perder.
Ao se instalar a crise, era notório
que terminara a fartura de recursos do período imediatamente anterior.
Quem pagaria pela crise?
Não dava mais para agradar a
todos, alguém tinha que perder. A pressão
subiu entre as camadas dirigentes.
A parcela da burguesia que não se reproduz “mamando
nas tetas do Estado”, como diz Gaspari, passou a
precisar do “apoio do Estado” para atravessar a crise.
Tinha, para isso, que diminuir a parcela da riqueza abocanhada pelo estamento
político-burocrático (os números
não
são
seguros, mas fala-se que 46% do todos dos investimentos no país
vinham do Estado e geravam propinas; alguns cálculos indicam que R$ 600 milhões
passam diariamente às mãos do
estamento político-burocrata via corrupção).
Frente à crescente pressão
e avaliando equivocadamente que a crise seria passageira, os petistas cometeram
seu maior erro estratégico. Decidiram privilegiar
aqueles aliados que, julgavam, seriam os mais fiéis, pois mais dependentes do
Estado. O estamento político-burocrático,
evidentemente. Em seguida, os setores da burguesia mais dependentes das
encomendas estatais (as grandes empreiteiras, a construção
civil, uma parte do agrobusiness e o capital interessado nos grandes eventos).
E, por fim, a burocracia sindical, a CUT e a central do PC do B. Avaliavam que,
com esse “arco de alianças”
garantiriam apoio suficiente no Congresso e entre o empresariado para
sobreviver à crise que, repetimos, na avaliação
deles, seria curta. Foi assim que Temer virou vice-presidente.
Erro mortal! Deixaram fora do poder todo o restante do
grande capital. Metalurgia, eletro-eletrônica, papel e celulose, química,
automobilística etc. etc. – ou seja, praticamente todo o
grande capital industrial – mais a maior parte dos
bancos, do comércio e uma parte do agrobusiness. A estratégia
petista formou contra ela “um arco de alianças”
impossível de ser derrotado. O fim do petismo era questão
de tempo.
Intensificaram-se as denúncias de corrupção,
a Lava a Jato entrou em ação com o apoio dos órgãos
de imprensa mais importantes; Moro se tornou personalidade internacional e vários
dos operadores-chave do estamento político-burocrático
e vários dos empresários integrantes do “bloco
petista” foram para a cadeia. A Fiesp, a Febraban, uma
enorme quantidade de entidades patronais, entraram agressivamente em campo.
Publicaram manifestos e manifestos contra o governo, organizaram manifestações,
conspiraram o quanto puderam. A luta era pra valer entre estes setores da
burguesia e o estamento político-burocrático.
Foi para desmontar o esquema articulado a partir do Planalto
que veio o impeachment da Dilma. As “pedaladas fiscais”
foram só o pretexto: o PT se tornara um elo decisivo da
corrupção que concentrava os recursos no Estado no estamento
político-burocrático e nos setores do capital
eleitos pelos petistas como seus aliados preferenciais.
O desenvolvimento da crise política a partir de então
foi marcado pela dissolução do “bloco
petista” no poder. Os primeiros a abandonar o barco foram os
“donos
do Congresso”. Velhas raposas, burocratas e políticos
de décadas, que conhecem as mazelas e os meandros do
poder estatal, perceberam que era melhor negociar com o grande capital do que
enfrentá-lo. Mas negociar a partir de uma posição
de força, visando a sobrevivência do estamento político-burocrático.
Temer, aliado de Cunha, ungido vice-presidente por Lula para “garantir”
o apoio do Congresso, entrega a cabeça de Dilma para o grande
capital.
Logo foram os “companheiros”
da CUT e dos sindicatos que mostraram o quanto vale sua lealdade. Fizeram
manifestações contra o impeachment na medida exata para que não
fossem acusados de “cúmplices”
dos “golpistas” e, também
na medida exata para que as manifestações não
inviabilizassem o impeachment da “companheira Dilma”
(do mesmo modo como têm feito manifestações
“contra”
a reforma trabalhista e “contra” a
reforma da previdência, em nossos dias).
Sobrou para o PT o apoio do MST apelegado e das pesquisas de
opinião pública que colocam Lula como o
favorito para as eleições deste ano.
A disputa no interior do estamento político-burocrático
também se acentuou. Temer teve que pagar literalmente
bilhões para os congressistas não
entregarem sua cabeça à
justiça. Alguns setores vão perdendo a disputa (por
exemplo, a “sucursal” do Rio de Janeiro do esquema
das propinas), mas quem é mais rapidamente expulso da
festa é a burocracia sindical que, lembremos, foi trazida
ao “poder” pelos petistas. A reforma
sindical inclui o fim do imposto sindical e fala-se no retorno da fiscalização
do TCU sobre as verbas transferidas às centrais sindicais pelo
Estado.
A burocracia sindical sente o golpe e passa a negociar:
promete se comportar não agitando as massas contra o
impeachment da Dilma e, depois contra as reformas trabalhista e previdenciária.
Topa perder, desde que não “em
demasia”. Com isso dá um tiro em seu próprio
pé:
sem o apoio das massas nas ruas contra as reformas, também não
tem força para negociar o que gostaria. Perde o imposto
sindical não apesar, mas porque se “comportou”
na defesa dos trabalhadores.
A “ofensiva” de Temer
Acuado, o estamento político-burocrático
fez valer seu peso histórico. Através de manobras e
contramanobras, de vais-e-vens, de alianças e traições,
de delações premiadas e morte de testemunhas, de compras de
falsos testemunhos e esquemas milionários, como o de Cunha, para
manter peças chaves de boca fechada, etc., o estamento burocrático-político
se reorganizou sob Temer e Rodrigo Maia (presidente da Câmara
dos Deputados). Então, fez perceber aos do bloco “da
oposição” que a única
alternativa é a negociação.
Eles aceitam rifar o governo petista, através
do impeachment da Dilma; topam reduzir o nível da corrupção
(isto é, a parcela da riqueza nacional que fica com eles);
topam aprovar no Congresso legislações impopulares -- desde que não
seja colocada em risco a sua própria sobrevivência.
Aceitam até mesmo que alguns dos seus sejam presos (Cunha,
Garotinho, Cabral etc.) desde que a estrutura de poder ao redor de Cunha,
Temer, Maia, Jucá, etc. se mantenha mais ou menos intacta. Vão
vendendo caro cada reforma que o capital necessita: desde a flexibilização
da entrada de capital estrangeiro na Petrobrás e nos campos do pré-sal,
no início do governo Temer, até a
reforma trabalhista do ano passado.
A resistência do estamento político-burocrático
teve efeito e, em alguns poucos meses, o grande capital começou
a mudar a sua postura.
Logo após o impeachment da Dilma,
discutia-se abertamente se não seria o caso de se botar
Temer abaixo, também. Jornais como o Estadão e a
Folha eram claramente simpáticos a essa tese. A resistência
do estamento político-burocrático os fez enxergar a
realidade: a não ser por um golpe, não havia como se livrar do
Congresso tal como ele é hoje. As tentativas de
impeachment do Temer não dão em
nada, ele resiste às pressões… O
Estadão é o primeiro a mudar de posição:
se Temer é ruim, a alternativa de um golpe é
ainda pior. Logo em seguida, o Estadão começou a
defender a limitação da Lava-Jato e, num momento posterior, passa a
atacar o judiciário no que este tem de calcanhar de Aquiles: os salários
e privilégios. O mote do Estadão passa a ser: não
é
possível jogar todos os políticos nas prisões
de Curitiba, isto seria ir longe demais. Há que se colocar um limite!
Foi então que estamento burocrático-político
colheu sua maior vitória: todas as pressões
do grande capital “de oposição” para
que o Congresso aprovasse a reforma da previdência, fracassam! Os políticos
e burocratas estão mostrando sua força e, a burguesia, arrega! Não
se fala mais, então, em derrubar Temer, mas discute-se qual o
candidato a substituí-lo a partir de 2018. Há,
de fato, parece reconhecer o grande capital “da oposição”,
que negociar com o estamento político-burocrático,
derrotá-lo não seria possível.
A intervenção no Rio de Janeiro
Sentindo-se fortalecido , Temer decidiu passar à
iniciativa. Promoveu a intervenção no Rio e se declarou
candidato à eleição presidencial. Do alto de
seus 90% de rejeição, sabe que o decisivo para as eleições
não
é
o apoio popular. A intervenção, como disse alguém,
foi um “golpe de mestre”. Temer posou de sheriff nacional contra o crime e trouxe
para o seu lado o prestígio e o apoio da burocracia
fardada. Como parte do acordo com os militares, Temer entregou a eles diversos
cargos importantes no governo, inclusive o Ministério da Defesa, desde 1988
ocupado sempre por um civil.
A situação no Rio de Janeiro é
apenas mais grave e aguda do que a situação no restante do país.
Está longe de ser uma situação única
e exclusiva. Desde há muito o poder do crime
organizado e desorganizado constitui um dos importantes fatores da “governabilidade”:
sem um acordo com o crime, não apenas o controle da violência,
mas o controle do próprio crime torna-se inimaginável.
Nem a Ditadura Militar conseguiu quebrar a força do jogo do bicho. De lá
para cá, com as drogas e o comércio
de armas, a situação apenas se agravou.
Ao longo dos anos foi sendo construído um
modo de convivência: dentro de limites e em áreas
geográficas delimitadas, o tráfico
de drogas e armas, prostituição e jogo do bicho são
permitidos pelos governantes. Mas a lógica não se
interrompe aí.
Tal como o estamento político-burocrático
que, a partir de seu poder no Estado, cobra sua taxa de corrupção,
os policiais também cobram dos criminosos sua “caixinha”.
Esta última nada mais é que a versão
pobre do esquema de corrupção administrado pelos Temers e
Cunhas da vida. Há dados que indicam que a “caixinha”
era, há alguns anos, quase o dobro do total que o Estado do
Rio de Janeiro então pagava de salários aos policiais.
Além disso, o capital envolvido
nas drogas e armas precisa ser “lavado”: a
conivência, se não a participação
ativa, das altas autoridades da segurança e, por extensão,
dos governos estaduais e municipais, é um pressuposto indispensável
para esta lavagem. A qual, ainda, interessa a uma enorme quantidade de doleiros
e alguns grandes banqueiros. Essa enorme base social –
traficantes, policiais, burocratas de todos os escalões do
Estado, banqueiros, doleiros e, não nos esqueçamos,
de juízes e procuradores – possuem uma força
de pressão considerável sobre os governos cariocas
os quais, por sua vez, não se fazem de rogados em ceder
a estas pressões desde que, claro, recebam sua parte do butim.
Esse esquema estadual apenas pode se manter com uma articulação
com o esquema nacional. Os no poder em Brasília devem receber “o
seu” para não apoiarem as forças
de “oposição” no
Estado, por sua vez os “de Brasília”
devem, pela alocação das verbas federais, abrir oportunidades para que
o estamento político-burocrático nos Estados se locuplete
com a corrupção decorrente. O Pan-Americano e as Olimpíadas
que não me deixem mentir. Garotinho e Cabral são
apenas os casos mais emblemáticos dessa articulação
entre a corrupção federal, a corrupção carioca, os traficantes e
os milicianos.
Esse esquema se equilibrava precariamente, mas se
equilibrava, até alguns anos atrás. Havia momentos de maior
tensão e violência intermediados por outros
de pacificação aparente. Mas nada semelhante ao que hoje vivemos
no Rio de Janeiro. A crise econômica e o agravamento das tensões
sociais é o pano de fundo desta explosão. A
desarticulação do bloco petista no poder, as disputas no
interior da burguesia e do estamento político-burocrático,
a Lava-Jato e suas consequências etc. são
fatores que também contribuíram para romper o antigo equilíbrio.
A causa imediata e direta desta explosão
é
a disputa entre os milicianos e os traficantes pelo controle de áreas
inteiras da cidade. Em poucas palavras, grupos de policiais descobriram que
podiam disputar com os traficantes o controle de áreas de periferia da cidade.
Tal como os traficantes, a partir deste controle eles vendem serviços
à
população, vendem “segurança”
acima de tudo e, ainda, podem cobrar pedágio dos traficantes para que “operem”
nas áreas sob seu controle. Essa é uma
atividade muito mais lucrativa que simplesmente a tradicional “caixinha”.
Além do conflito entre policiais
e traficantes, agora surge um novo, mais agudo e violento conflito, entre os
milicianos e os traficantes. Diferente do confronto policiais-traficantes,
temos agora um conflito entre dois grupos armados ilegais e semiclandestinos:
um conflito para além do Estado. As UPPs serviram
de fachada legal para o estabelecimento das milícias – e não
passaram muito disto.
A intervenção tem uma direção
precisa: trata-se de combater o crime organizado e não as
milícias. A corrupção entre as forças
de repressão, desde juízes e procuradores até
o policial mais modesto, não será alvo
da ação das Forças Armadas. Afinal, direta ou
indiretamente, eles são sócios
e aliados do esquema de corrupção que articula, em infinitos
canais, a podridão de Brasília com a violência
nas periferias das grandes cidades.
Foi a intervenção que criou as condições
para a execução de Marielle Franco.
A execução
No ambiente social do Rio de Janeiro, não
há
mais lugar para o meio-termo. Não por uma questão
de radicalização das opiniões, mas pela radicalização
da situação real. No conflito entre milicianos e traficantes,
quem apoia os direitos humanos está ao lado dos traficantes
contra os “de bem”, como os milicianos se autodenominam.
E isto independente do desejo ou da inclinação das pessoas, tem um elevado
grau de veracidade. Quem milita em uma favela como a Maré sabe
muito bem que não é possível
uma atuação qualquer sem a anuência do chefe do pedaço,
traficante ou miliciano. Não é
improvável que a vereadora do PSOL tenha recebido, sem que
tenha solicitado ou que tenha negociado, o apoio eleitoral do tráfico
da Maré. E, a bem da verdade, seja lembrado que a maior
parte de seus votos veio das regiões mais ricas da cidade e não
das favelas.
Com a intervenção, os milicianos entenderam o
recado: é a oportunidade para ocupar as áreas
que o Exército vai tomando do crime organizado, é
o momento de se expandirem e, por isso, é também a
hora de calar quem denuncia a expansão dos milicianos e as suas
consequências. Os democratas e defensores dos direitos
humanos não são apenas adversários
ideológicos, são também
aqueles que “atrapalham os negócios”. É,
hora, além disso, de acertar velhas contas.
Quem executou Marielle? Temer com sua intervenção,
para começo de conversa. Mas só para começo,
pois o fundo do poço é muito mais embaixo. Não
é
por acaso que, mais de 10 dias depois, apenas se sabe que vieram da Polícia
Federal as balas do crime. E nada mais!
Enquanto isso…
Enquanto isso, o “arco de alianças”
na nossa pobre esquerda eleitoreira nada mais faz do que clamar por uma melhor
a mais justa administração do único
Estado que o capital pode nos oferecer neste país. Para essa esquerda, a solução
não
está em superar o capital, mas em administrá-lo
com maior eficiência e justiça: elejam a nós
que tudo isso será resolvido. Do PSOL ao PCB, do PC do B ao PSTU, do
MST ao MTST, o clamor é um só: nos
elejam!
Pobre essa esquerda que não consegue –
nem nessas circunstâncias – ir
além
do horizonte eleitoreiro burguês. Mas há,
para isso, uma razão de fundo: são também, ou
gostariam de ser, financiados pelas verbas estatais. As mesmas verbas que
servem à corrupção e, em outras mãos,
executaram Marielle. Bem pesadas as coisas, são apenas a ala esquerda do
Partido da Ordem – se é que o Partido da Ordem tem
uma ala esquerda.
Sérgio Lessa