Por Ivo Tonet
Para aqueles que não estão preocupados apenas em melhorar esta forma de sociedade, mas querem construir um mundo livre das desigualdades sociais, participar ou não do processo eleitoral não é uma questão de princípio. O importante é analisar a situação concreta e verificar se a participação pode ser um instrumento, ainda que indireto, nessa luta pela transformação radical do mundo.
Para aqueles que não estão preocupados apenas em melhorar esta forma de sociedade, mas querem construir um mundo livre das desigualdades sociais, participar ou não do processo eleitoral não é uma questão de princípio. O importante é analisar a situação concreta e verificar se a participação pode ser um instrumento, ainda que indireto, nessa luta pela transformação radical do mundo.
1 – A situação concreta
Como resultado da trajetória histórica
dos últimos cento e cinquenta anos, a luta pela mudança do mundo encontra-se,
hoje, em situação extremamente difícil.
Ao longo destes anos, muitas foram as batalhas travadas entre o capital
e o trabalho. Infelizmente, não obstante
vitórias pontuais do trabalho, o que predominou foram as vitórias do capital.
Porém, algo mais grave aconteceu. Ao longo dessa trajetória, a perspectiva do
trabalho, que é a de superar inteiramente o capital, foi perdendo, cada vez
mais, a sua especificidade, o seu caráter radicalmente revolucionário e se
tornado sempre mais reformista.
Para os revolucionários socialistas,
Marx à frente, era claro que a tarefa de mudar o mundo repousava sobre os
ombros das classes subalternas. Essas,
reunidas ao redor da classe trabalhadora, deveriam organizar-se de maneira independente
do Estado, lançar-se à luta e nesse processo ir criando uma consciência cada
vez mais clara dos seus objetivos. Para
eles, estava meridianamente claro que a transformação do mundo seria obra das classes
subalternas organizadas e conscientes e jamais o Estado. Portanto, que o eixo da luta revolucionária
nunca poderia ser o parlamento e o Estado.
O objetivo não poderia ser a tomada do poder, para, por meio dele,
conduzir a mudança do mundo. A tomada do
poder seria apenas um primeiro momento,
que criaria as condições para que a “alma social”, ou seja, as mudanças concretas
nas relações de trabalho – instauração de uma forma de trabalho comandada de
modo consciente, livre e coletivo pelos próprios trabalhadores – pudesse se
manifestar plenamente.
Eles sabiam que o estado sempre seria,
em essência, um instrumento das classes dominantes e que, portanto, jamais
poderia ser simplesmente conquistado, reformado e posto a serviços das classes
subalternas. Sabiam que, por mais
desenvolvido que fosse o sistema democrático, ele só poderia admitir a
participação dos trabalhadores na medida em que aceitassem os limites impostos
pela propriedade privada. Sabiam,
também, que o Estado não é composto apenas do legislativo e do executivo, mas
também do sistema judiciário, administrativo e repressivo. Que, portanto, mesmo se houvesse
possibilidade de ocupar o executivo e ter maioria no legislativo, ainda assim,
os trabalhadores estariam longe de ter efetivamente o poder do estado em suas mãos. Sabiam, além disso, que o sistema
político-eleitoral é a melhor forma de iludir e desmobilizar a população, pois
a leva a acreditar que o poder está em suas mãos, quando, de fato, ele jamais
escapa ao controle das classes dominantes.
No entanto, embora não tendo ilusões quanto ao sistema democrático
burguês, tinham claro que a democracia é o melhor espaço para levar a luta do
trabalho contra o capital até o seu fim.
Por isso mesmo, para eles, a democracia jamais poderia ser suprimida por
decreto. A democracia só poderia extinguir-se quando entrasse em cena
uma forma superior de liberdade. E esta
seria, necessariamente, fundada no trabalho associado. Assim como o trabalho abstrato é o fundamento
do modo de produção capitalista, o trabalho associado é o fundamento da livre associação
dos trabalhadores associados, outro nome para o modo de produção comunista.
No entanto, por um processo extremamente
complexo e tortuoso, e tanto pela via reformista da social-democracia alemã,
como pela via revolucionária soviética e
depois pela chamada “via democrática”, o eixo da luta foi sendo deslocado da
organização autônoma e independente da classe trabalhadora para o interior do
Estado e do parlamento. Os reformistas,
acreditando que, através da ampliação da participação da classe trabalhadora no
parlamento, os trabalhadores poderiam aumentar cada vez mais o seu peso e assim
tomar o poder do Estado para, por intermédio dele, realizar as transformações
rumo ao socialismo. Os revolucionários,
inicialmente na Rússia e depois em todos os outros países, porque se viram
diante de uma situação na qual faltavam as condições materiais para caminhar no
sentido do socialismo. Isto é, faltavam
exatamente, as condições para instaurar o trabalho associado, a “livre
associação dos trabalhadores livres”.
Por isso, entenderam que deveriam utilizar-se do Estado como esse
instrumento capaz de dirigir a criação daquelas condições. Os reformistas da “via democrática” (eurocomunistas e socialistas
democráticos, seguidos pela maioria da esquerda dos países capitalistas),
acreditando que o caminho da transformação do mundo passava pela ampliação da
influência da esquerda na chamada sociedade civil, e, depois, no próprio
Estado.
Por todos esses caminhos, o campo de
luta foi sendo deslocado, teórica e praticamente, do terreno da “fábrica”, isto
é, do lugar onde se produz a riqueza material e por isso, onde se dá o embate
fundamental entre o capital e o trabalho e a partir do qual se deve dar a
organização e tomada de consciência da classe trabalhadora, para o terreno do
parlamento e do Estado. E, mesmo quando
as lutas extra-parlamentares eram incentivadas, sempre se deixava claro que
elas deveriam desaguar no parlamento. O
resultado disso é que as classes populares e, com o tempo, também a maior parte
dos revolucionários, foram levadas a acreditar que poderiam intervir
decisivamente na transformação do mundo apenas depositando o seu voto nas
urnas. Além disto, também foram levadas
a acreditar que a falta de atendimento às suas reivindicações estaria ora na má
administração, ora na traição dos políticos e partidos, ora na falta de
honestidade, ora na falta de recursos, etc., jamais na própria essência das
relações materiais da sociedade (as relações de produção capitalista) e no
Estado, como instrumento necessário para a reprodução dessas relações.
Passividade, desmobilização, alienação,
acomodação diante da continuidade e até o crescimento das desigualdades
sociais, perda completa da perspectiva de uma transformação radical do mundo e
perda da consciência de que são elas, as classes subalternas, que devem assumir
o protagonismo dessa transformação, contra o capital e contra o Estado. Essas foram as consequências do deslocamento,
realizado pela esquerda, da centralidade do trabalho para a centralidade da
política. Deste modo, os partidos ditos
de esquerda passaram a comportar-se como típicos partidos burgueses. Fazendo das massas populares meras massas de
manobra para a realização dos seus interesses.
É interessante ver a maneira de atuar
dos partidos burgueses. Os capitalistas
sabem que a sua força não está no parlamento, mas lá onde se concentra a produção
e a circulação da riqueza. Contudo,
sabem, também, que o Estado é um instrumento indispensável para a manutenção e
reprodução dos seus interesses. Por
isso, utilizam-se do processo eleitoral, e aí estão incluídos todos os meios
legais e ilegais, para levar os seus representantes, a ocuparem o poder do
Estado. Mas, o que é importante: eles –
os capitalistas – jamais deixam de ter o controle em suas mãos. Não são eles que são instrumentos do Estado,
o Estado é que é o seu instrumento. Está
é exatamente a forma de agir que convém à reprodução dos interesses das classes
dominantes.
Ora, os partidos e outras organizações
de esquerda, ao pretenderem agir desta mesma forma, desvirtuam completamente as
tarefas que são próprias da classe trabalhadora.
Ao contrário do capital, o trabalho não
admite uma estrutura de comando centralizada.
A produção da riqueza (o trabalho) é necessariamente social, ao passo
que a apropriação é sempre privada, quer
dizer, concentrada em poucas mãos. Por
isso mesmo, a libertação da classe trabalhadora não pode ser obra de um pequeno
grupo organizado, mesmo sob a forma do Estado.
Tem que ser obra do conjunto da classe trabalhadora, consciente e organizada
de forma independente e contrária ao Estado e ao capital. Em consequência disto, só faz sentido as
classes populares participarem do processo político-eleitoral se elas puderem
controlar os seus representantes. Mas,
elas só poderão controla-los se estiverem conscientes dos seus interesses e
organizadas para defendê-los. Se isto
não acontecer, elas se transformarão, inevitavelmente, em massa de
manobra. Após elegerem os governantes,
estas massas não terão como exigir de seus representantes o cumprimento do que
foi prometido, tornando-se, então, expectadoras passivas e desorientadas.
Foi isto o que aconteceu no Brasil ao
longo destes últimos vinte e cinco anos.
Os partidos de esquerda, especialmente o PT, transformaram a chegada ao
poder em fim em si mesmo. Para isso,
viram-se obrigados a fazer cada vez mais concessões e alianças com forças que
seriam, em princípio, inteiramente contrárias à realização de profundas
transformações na sociedade brasileira.
Esse processo de reformização implicou,
por sua vez, a burocratização dos partidos, pois, a ocupação da máquina do
Estado se transformou em meio de reprodução dos interesses dessa vasta camada
de parlamentares e burocratas sindicais e intelectuais. Assim, o que era meio – a busca de postos no
parlamento e no Estado para defender lá os interesses dos trabalhadores – passa
ser fim, ou seja, a reprodução dos seus próprios interesses. E, de novo, as classes populares passam a ser
apenas massas de manobra para o momento da eleição e nada mais. Em troca disso recebem apenas migalhas, pois
as políticas econômicas implementadas por estes partidos continuam a carrear as
riquezas para as mãos dos capitalistas,
nacionais e internacionais. Tudo isso,
claro, recoberto com o discurso da mudança e da transformação e com a
necessária concessão de pequenos benefícios para as classes populares.
2
– O sentido do voto nulo
Por todos estes motivos, hoje, o voto
nulo é, ao nosso ver, a melhor opção.
Mas, ele embute um enorme perigo.
Porque pode ter dois sentidos.
Pode ser simplesmente um voto de protesto. Vale dizer, a manifestação de um
descontentamento com a forma da política burguesa e não com o conteúdo da
própria política. Pode significar a
insatisfação com a corrupção, a desonestidade, a roubalheira, as falcatruas, o
descaso com o interesse público que tem dominado a cena política. Isso significa, por sua vez, que não se está
rejeitando a forma burguesa de fazer política, com todas as suas consequências,
mas, apenas, que se gostaria que dar um “recado” para que a vida política fosse
reformulada no sentido da honestidade e da preocupação com o interesse público.
Esta é, muito provavelmente, a
preocupação predominante entre aqueles que se dispõem a anular o seu voto.
Nisso reside um enorme perigo. Pois, dessa maneira não se faz avançar, de
modo nenhum, a consciência política revolucionária.
É preciso compreender que o problema
não está na honestidade ou não dos políticos.
A política burguesa implicará
sempre, em menor ou maior grau, de forma mais aberta ou velada, a corrupção e a
predominância do interesse particular sobre o interesse público. Se o poder político, numa sociedade
capitalista, é a expressão, ainda que mediada, dos interesses econômicos, que são
particulares, isso não poderia ser diferente.
A questão, pois, não é de honestidade,
mas do que se pretende fazer e do compromisso efetivo, provado na vida diária,
com um programa de transformações radicais da sociedade. Há políticos burgueses que são honestos. Nem por isso, estão comprometidos com os
interesses dos trabalhadores. Para as
classes populares, isso significa que elas precisam, através de um processo de
lutas, que leva à tomada de consciência e organização, estabelecer claramente
quais as propostas que querem ver realizadas.
Propostas que sinalizam claramente na direção de uma confrontação com o
capital e com o Estado, embora isto não tenha que ser de modo direto e
imediato. E ter a possibilidade, oriunda
dessa consciência e dessa organização independente (do capital e do Estado), de
controlar aqueles que forem levados a ocupar postos no Estado.
Por isso mesmo, ao nosso ver, o voto
nulo só significa um avanço na medida que expressar a clara intenção de desfazer o deslocamento
da centralidade do trabalho para a
centralidade da política. De recolocar a
perspectiva do trabalho em primeiro plano, isto é, a priorização das lutas
extraparlamentares, a tomada de consciência
e organização independente das classes subalternas, a tomada de consciência
de que são elas os sujeitos fundamentais das transformações sociais, de que não
é através do processo político-eleitoral que se realizarão as transformações
que lhes interessam.
Voltamos a enfatizar: não se trata de
rejeitar, para sempre e por princípio, a participação no processo
eleitoral. Mas, de ter claro que esta
participação só atende os interesses das classes subalternas quando estas,
através do processo de lutas, estiverem conscientes e organizadas para fazer
valer os seus interesses.
Por isso mesmo, na medida em que essa
consciência e essa organização estão, hoje, muitíssimo debilitadas, todo o
investimento de trabalho político deveria estar voltado nessa direção. Em consequência disso, ao nosso ver, a
questão fundamental, nesse momento, é mudar
o eixo da luta das classes subalternas.
É escapar do círculo de ferro, imposto pelo capital e aceito pela
esquerda, que limita a luta ao interior do processo político-eleitoral. É levar as classes populares a reassumir o
protagonismo das transformações sociais.
Maceió, junho de 2006
Ivo Tonet
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