Por Ivo Tonet
Professor de filosofia da Universidade Federal de Alagoas,
Doutor em educação pela UNESP, Maceió - Alagoas
Introdução
A comemoração dos cem anos da revolução russa deveria ensejar, para a esquerda que se pretende revolucionária, um ótimo momento para refletir sobre a sua trajetória desde aquele momento, fazer uma autocrítica séria e tirar lições importante para a luta no momento atual.
Por
que a partir da revolução russa? Porque ela constituiu um acontecimento de
inigualável importância como tentativa de superar o capitalismo e construir um
mundo onde não houvesse nenhum tipo de exploração nem de dominação de um ser
humano por outro, enfim, um mundo onde todos pudessem ter uma vida digna. Além
disso, por que essa revolução, que despertou a esperança de milhões de pessoas,
pela qual milhares de pessoas deram a vida, em nome da qual imensas lutas foram
travadas, fracassou? O que aconteceu, tanto em termos teóricos quanto práticos,
para que ela não pudesse atingir os objetivos pretendidos? Erros, deformações,
incapacidades, falta de condições essenciais? Outras circunstâncias?
Por
que é tão importante essa abordagem crítica? Porque é necessário aprender com o
passado, compreender as causas dos insucessos e orientar melhor as práticas
futuras. Porque essa crítica é conditio
sine qua non para avançar no processo revolucionário.
Não
se trata de uma tarefa fácil. Tanto pela complexidade dessa problemática, como
pelas paixões que ela desencadeia. Paixões estas, não apenas entre os seus
adversários, mas também, e de modo especial, entre os seus defensores. Críticas
quanto a erros, deficiências e deformações são até aceitas por estes últimos. Mas,
críticas que ponham em questão o caráter socialista dessa revolução e suas
consequências – e de outras (chinesa, cubana, vietnamita, etc) – são
imediatamente tachadas de contrarrevolucionárias, de defensoras do capitalismo.
Argumenta-se, muitas vezes, que questionar o caráter da revolução russa é
desconhecer, desmerecer ou menosprezar os aspectos positivos desse
extraordinário acontecimento. Por isso
mesmo, queremos deixar estabelecido, antecipadamente, que não desconhecemos,
desmerecemos ou menosprezamos o extraordinário significado que ela teve para a
humanidade; as enormes melhorias em termos de vida material, de saúde, de
educação, de habitação, etc. para a população russa; a influência positiva que
teve para a melhoria de vida até dos trabalhadores dos países capitalistas. Temos
certeza, inclusive, que a luta do povo russo foi o elemento fundamental para a
derrota do nazismo e, mais tarde, para o sucesso de muitas lutas de libertação
colonial. Tudo isso, certamente, foi, também, conquistado a um custo muitíssimo
alto para a maioria daquele povo.
Todavia,
tudo isso não é argumento para dirimir o problema do caráter da revolução
russa. A discussão a esse respeito situa-se em um nível que não põe em questão,
de modo nenhum, esse reconhecimento.
Não
nos ocuparemos, aqui, das críticas dos seus adversários. Estes, orientados pela
perspectiva teórica e prática burguesa, tem todo interesse em demonstrar, a
partir desses exemplos históricos e sem se importar com a verdade, a
impossibilidade do socialismo. O que nos interessa são as abordagens daqueles
que a defendem. Estes, pelo menos em termos de intenção, defendem a
possibilidade e a necessidade do socialismo, independentemente de qual seja a
sua concepção acerca dessa categoria. Nosso objetivo, porém, não é examinar os
argumentos de cada grupo ou autor. Isso exigiria uma investigação muito ampla e
prolongada. Buscaremos, aqui, com o risco conscientemente assumido de cometer
erros, sinalizar as questões que nos parecem mais relevantes e que demarcam
tanto as diversas posições quanto os rumos que sugerimos para essa investigação
crítica necessária.
Temos
consciência de que mesmo dentro desse universo, em sentido muito amplo, de
esquerda, a tarefa não é nada fácil. De um lado, pelas paixões que esse tema
desencadeia. Entre leninistas, trotskistas, stalinistas, anarquistas,
socialistas democráticos e outros, as divergências são enormes e, muitas vezes,
fundadas mais em preconceitos do que em argumentos científicos. De outro lado,
e aí reside uma questão de capital importância, a ampla maioria das abordagens
desse processo revolucionário já é tributária de uma concepção metodológica que
é resultado desse mesmo processo. Uma concepção metodológica que abandonou a
categoria do trabalho como fundamento ontológico do ser social e que, a partir
disso, atribuiu à subjetividade o papel de regente tanto no processo de
conhecimento quanto na ação prática. A
isso nos referiremos mais adiante (a respeito da problemática metodológica ver, de nossa autoria: Educação e revolução e Método científico - uma abordagem ontológica).
Nesse amplo espectro da esquerda, independentemente do conceito de socialismo, a ampla maioria concorda que a revolução russa foi uma revolução socialista. Também concorda que a revolução, independente do que tenha realizado, fracassou. Essa apreciação também se refere a todas as outras revoluções: chinesa, cubana, vietnamita, norte-coreana, sandinista. No entanto, e de modo geral, duas questões dividem esse campo. Uma referente ao momento em que a revolução começou a degenerar; outra, referente às causas da degeneração.
Quanto ao momento, uma grande maioria entende que a revolução, com todas as suas dificuldades e percalços, manteve seu caráter socialista enquanto teve a direção de Lenin. Sua degeneração teria começado com Stalin. Vale lembrar, todavia, que houve grupos, minoritários, que afirmaram a degeneração mesmo durante o tempo da direção de Lenin. Outros entendem que o caráter socialista teve seu fim ou com a morte de Stalin ou com os últimos governos – Yeltsin e Gorbachev – e ainda com a queda do muro de Berlim, embora haja outros que ainda sustentam o caráter atualmente socialista da China, de Cuba e da Coreia do Norte.
Quanto
às causas da degeneração, de novo, a ampla maioria entende que foram concepções
errôneas ou erros tópicos cometidos pelo partido bolchevique e/ou por
dirigentes, tenham sido eles Lenin, Trotski, Stalin e outros. Erros,
particularmente nos terrenos econômico e político. Mas, juntamente com erros,
também circunstâncias históricas adversas, tais como: a guerra civil interna,
as agressões das potências capitalistas e a imensamente difícil situação
econômica e social em que a Rússia se encontrou ao final da primeira Guerra
Mundial.
Pese
a todas as divergências, uma questão unifica a ampla maioria das abordagens: a
centralidade da subjetividade,
seja ela sob a forma da regência da subjetividade sobre a realidade objetiva,
do reformismo ou do politicismo. Como veremos, isso também vale quando se
atribuem os desvios às circunstâncias objetivas (por centralidade da subjetividade entendemos a regência do sujeito sobre o objeto, no processo de conhecimento e, aqui, a prioridade da ação política sobre a realidade objetiva, no processo de intervenção sobre a realidade).
Antes
de prosseguirmos, é imperioso tratar da questão da relação entre subjetividade
e objetividade e também esclarecer o que entendemos por politicismo.
Uma das ideias
mestras da concepção materialista de história é que a realidade objetiva é o
momento predominante na relação entre ela e a subjetividade. Conforme a célebre
afirmação que encontramos em A ideologia
alemã (2009, 32): “Não é a
consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência”. Valha,
porém, enfatizar que determinação não significa, aqui, nenhum entendimento da
subjetividade com algo secundário e sem retroação efetiva sobre a realidade
objetiva. A análise da categoria do trabalho mostra, com toda a clareza, como
se dá essa relação entre subjetividade e objetividade. Temos, aí, claramente, uma relação
entre o momento fundante (realidade objetiva) e o momento fundado (subjetividade). Ambos são momentos da realidade. Todavia, a realidade objetiva é o momento
predominante, pois é ela que põe o campo de possibilidades dentro do qual a
subjetividade pode agir. Para enfatizar mais essa relação, poderíamos citar a
célebre afirmação de Marx acerca da história. Diz ele (2008, p. 207): “Os
homens fazem a sua própria história,
mas não a fazem segundo a sua livre
vontade (grifos meus), em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas
nas circunstâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas pelo passado”. Essa constatação será de suma
importância quando abordarmos a questão do caráter da revolução russa.
O
politicismo, por sua vez, é uma forma de expressão da regência da subjetividade
sobre a realidade objetiva. Ele tem por essência a atribuição à dimensão
política, cujo núcleo fundamental, na sociedade de classes, é o Estado, da
tarefa de determinar os rumos essenciais do processo social. Sabemos, pelo menos
desde Marx, que, na sociedade burguesa, é a lógica de autorreprodução do
capital o momento determinante. Ressalvada a determinação recíproca entre todas
as dimensões da realidade social – linguagem, socialidade, arte, Direito,
ciência, educação, política, etc – é a reprodução do capital que determina os
rumos essenciais da sociedade. O politicismo existe quando se atribui à
dimensão política (Estado) a capacidade de controlar o movimento do capital.
Nesse processo, o politicismo expressa, das formas mais variadas, a vontade de
reformar, de humanizar, de melhorar essa forma de sociabilidade (reformismo) ou
a afirmação de que o Estado, popular, operário) é o principal condutor do
processo de transformação social em direção ao socialismo.
Não
se confunda, porém, politicismo com atividade política. Esta é uma dimensão da
atividade humana que tem a sua origem, a sua natureza e a sua função social
específicas. Sem entrar no mérito da natureza da política, que discutiremos em
outro momento, esta é uma dimensão cuja existência, importância e
especificidade não podem ser negadas. Na sociedade de classes ela assume,
necessariamente, a natureza de luta pelo poder político, quer seja a favor da
manutenção da desigualdade social, quer
seja a favor da superação radical da desigualdade. Todavia, como parte da
subjetividade, a política tem que operar nos marcos – nunca rígidos – postos
pela realidade objetiva. Para resumir: à política cabe a tarefa importantíssima
de dirigir o processo social, mas no campo de possibilidades posto pela
realidade objetiva. O politicismo é exatamente a intenção de ir para além
dessas possibilidades e criar algo que a realidade objetiva não permite. Vale
lembrar aquela afirmação de Marx (1971, p. 87): “Por outro lado, se a sociedade
tal como é não contivesse, ocultas, as condições materiais de produção e de
circulação para uma sociedade sem classes, todas as tentativas para fazê-la
estourar seriam outras tantas quixotadas”.
Considerando
que todas as abordagens da revolução russa tem como pano de fundo a concepção
revolucionária marxiana, quer concordem ou não, no todo ou em parte, com ela,
convém sumariar, mesmo que brevemente essa concepção. Até mesmo porque não há
uma concordância unânime quanto aos elementos essenciais que a caracterizam.
1.
A teoria revolucionária marxiana
Como
sabemos, Marx afirma que o ponto de partida de uma concepção materialista da
história é a constatação – “empiricamente verificável” – da existência de
“indivíduos reais e de suas ações e condições materiais de vida”. Constata,
também, que o primeiro e fundamental ato que esses indivíduos têm que realizar
para continuar a existir, é a transformação da natureza, isto é, o trabalho. É
através do trabalho que o ser humano transforma a natureza e a si mesmo. O
trabalho, portanto, é a categoria fundante do ser social. Como consequência, em
qualquer modo de produção, sempre encontraremos uma determinada forma de
trabalho como seu fundamento. Não poderia ser diferente no modo de produção
comunista. Segundo Marx, este terá como seu fundamento o trabalho associado. E
trabalho associado não é uma simples associação de indivíduos, uma cooperativa,
economia solidária ou trabalho voluntário. Trabalho associado é uma categoria
tão precisa quanto trabalho assalariado e implica o controle consciente, livre,
coletivo e universal dos produtores sobre o processo de transformação da
natureza, base do comunismo.
Sabemos, porém, que a realidade social não se
esgota no trabalho. Há, nela, muitas outras dimensões, tais como linguagem,
socialidade, educação, conhecimento, arte, religião, Direito, política, etc.
Todas elas, porém, tem sua origem última na categoria do trabalho. Todas surgem
ou com ou a partir do trabalho. O que significa dizer que todas tem uma
dependência ontológica em relação ao trabalho. Mas, todas elas retroagem sobre
o trabalho e entre si, dando, assim, origem à dinâmica da totalidade social.
Ao
analisar a sociedade burguesa, Marx constata que as duas classes fundamentais
dela são constituídas pela burguesia e pelo proletariado. Também constata que é
ao proletariado que interessa eliminar a exploração à qual ele é submetido pela
burguesia. O que significa que esta classe será o sujeito fundamental, embora
não único, de uma transformação que supere integralmente a sociedade burguesa.
Mas, a superação da
sociedade burguesa tem como mediação inescapável, uma revolução. Diferentemente,
porém, das revoluções anteriores, que, segundo Marx, foram revoluções sociais
com alma política, a revolução proletária terá quer ser uma revolução política
com alma social (ver, sobre isso, de Marx: Glosas críticas ao artigo O Rei da Prússia e a Reforma Social. De um prussiano).
Momento político e momento social são dois aspectos inextricavelmente unidos
para dar forma à revolução proletária. Sem o momento político, isto é, sem a
conquista do poder, não poderá entrar em cena o momento social, vale dizer, as
transformações econômicas que caracterizam o trabalho associado. Mas, é de
capital importância que fique claro: essas transformações econômicas, que
constituem a essência da revolução tem um fundamento – o trabalho associado – e
implicam uma mudança radical na natureza da produção: a eliminação do valor de
troca e sua substituição pelo valor
de uso, com todas as consequências aí implicadas (eliminação da mais-valia, do
capital, do dinheiro, das coisas como mercadoria, etc.) Todavia, esta mudança
radical pressupõe três condições: um alto grau de desenvolvimento da capacidade
de produzir riquezas, em abundância, que possibilite satisfazer as necessidades
básicas de todos; um sujeito capaz de realizar essas transformações e o
esgotamento das potencialidades do atual sistema, que o transformem de força
positiva em força negativa e destrutiva para a humanidade.
Estes
são, em brevíssimo resumo, os elementos essenciais da proposta marxiana.
2. A
II Internacional, a deformação do marxismo e a emergência, em larga escala, do
reformismo e do politicismo
A
trajetória da teoria marxiana, como todos sabem, foi extremamente complexa.
Isto porque, mais do que qualquer outra, é uma teoria que assume, clara e
abertamente, uma posição de classe. Trata-se de uma teoria que responde aos
interesses mais essenciais do proletariado. Compreender o mundo até a sua mais
profunda raiz e também transformá-lo radicalmente, eis o objetivo último do
proletariado. E, para isso, é preciso que essa classe assuma a tarefa de
liderar uma revolução, isto é, uma transformação que mude a totalidade da
sociedade a partir da sua matriz, que é o trabalho.
Circunstâncias
históricas concretas impediram que a transformação prospectada por essa teoria
se efetivasse.
A
derrota das tentativas revolucionárias de 1848 e da Comuna de Paris abriu, para
o capital, amplas possibilidades de desenvolvimento, especialmente na Alemanha,
levando esse país a uma rápida industrialização e, com isso, a um grande
crescimento da classe operária. O desenvolvimento econômico permitiu uma
significativa melhoria de vida para uma grande parte dos trabalhadores. Além disso, a legalização
do Partido Socialdemocrata (socialista), composto de milhões de trabalhadores,
permitiu que estes participassem abertamente do processo político e elegessem
representantes para o parlamento. Esta situação contribuiu poderosamente para
gerar, não só na mente de milhões de trabalhadores, mas também de muitos
teóricos, inclusive marxistas, a convicção de que o socialismo poderia ser
atingido sem uma ruptura radical com o Estado e o capital. Mas, para isso, era
preciso fazer uma crítica do pensamento revolucionário de Marx e Engels,
“adaptando-o” às novas circunstâncias. Começam, então, as elaborações teóricas
- na economia, na filosofia, na história, na política, etc. – que configurarão
o reformismo e o politicismo: o abandono da centralidade (ontológica) do
trabalho em favor da centralidade (ontológica) da política; a afirmação de que
o caminho para o socialismo poderia ser trilhado pela via das reformas e não da
revolução; a atribuição ao Estado da tarefa de dirigir esse processo de
construção de uma sociedade socialista.
É
o primeiro momento em que se abandona a centralidade – teórica e prática – do
trabalho em favor da centralidade – também teórica e prática – da política. É
certamente, muito importante compreender como se deu esse processo, tanto
teórica como praticamente. No entanto, isso não será objeto do presente texto.
3. A revolução russa
Maravilhosa,
grandiosa, gloriosa. Esses e outros adjetivos acompanham, frequentemente, as
abordagens da revolução russa. Alertados
pelas advertências e pelos pressupostos referidos na Introdução e baseados na
teoria revolucionária marxiana, procuraremos entender o processo que teve
início em 8 de março de 1917 e teve seu fim em 1991. Um processo,
evidentemente, complexíssimo, cuja investigação detalhada ainda está em curso e
que, nem remotamente é nossa intenção abordar em seu conjunto (literatura sobre a revolução russa é muitíssimo extensa. A abertura dos arquivos da antiga União Soviética certamente trará á luz muitos novos elementos para análise. De todo modo, julgamos imprescindível a leitura e alguns livros: História da revolução russa, de L. Trotski; A crise do movimento comunista, de F. Claudín; As lutas de classes na União Soviética, de C. Bettelheim; Os bolcheviques e o controle operário. De M. Brinton; A revolução russa, de M. Tragtenberg; A revolução russa – de Lenin a Stalin, de E. Carr. Indispensáveis, também, as obras de Lenin.).
Todavia,
em meio a essa complexidade é possível destacar alguns aspectos essenciais que,
a nosso ver, configuram o fio condutor desse processo.
Os
fatos imediatos são bastante conhecidos. Uma profunda crise do capitalismo, que
culminou na primeira guerra mundial, que engolfou a maioria dos países do mundo
e cuja essência era a disputa do mundo entre as grandes potências. Uma Rússia
econômica, social e politicamente muito atrasada. Embora com pequenas ilhas de
avanço, este atraso também atingia, no campo cultural, a maioria da população,
amplamente analfabeta e submetida a condições brutais de exploração e
dominação. Além disso, a maioria da população era composta de habitantes do
campo – servos e camponeses – e de um proletariado muito diminuto e sem
tradição de luta, dada a recentíssima e limitada industrialização. Para agravar
a situação, um sistema político dominado por uma nobreza feudal e em profunda
decadência.
Nesse
caldo de enormes contradições e lutas no campo e na cidade é que adentrou a
teoria marxiana, levada por diversos grupos revolucionários, por volta de 1870.
É, também, nesse momento que se organizaram o Partido Socialdemocrata Russo
que, apesar do nome, era um partido revolucionário e não reformista e outros
partidos de esquerda.
O processo revolucionário
teve seu primeiro momento de eclosão em 1905. Derrotado, ele voltou a se
reerguer, com toda a força, em 1917. Vale notar que, de início, em 1917, não
foi um movimento organizado e liderado por nenhum partido. O acirramento das
contradições levou as massas
a explosões que somente após algum tempo foram lideradas por vários partidos.
São
conhecidos também os eventos de fevereiro a outubro de 1917, quando os
bolcheviques, finalmente, assumiram o poder. Ao assumirem o poder, viram-se na
necessidade de fazer a paz com a Alemanha para evitar uma derrota total. Porém,
após o término da guerra encontraram um país devastado econômica e socialmente.
A situação era simplesmente catastrófica. Produção econômica arruinada nas
cidades e no campo, desemprego, desabastecimento das cidades, fome,
miséria. Nesse momento, e até 1921,
tiveram que enfrentar a oposição armada da burguesia auxiliada pelas potências
imperialistas.
Diante
disso viram-se na contingência de tomar medidas drásticas, mas muito
problemáticas. Lembremos apenas algumas mais importantes: Já em fins de 1917,
foi tomado um conjunto de medidas (criação de órgãos estatais, estabelecimento
de determinadas relações entre Estado, sindicatos e comissões de fábrica, regulamentação
do trabalho nas fábricas) que retirava das mãos das massas revolucionárias e
especialmente dos sovietes e das comissões de fábrica o poder sobre a
organização da produção tanto em nível geral quanto no interior das fábricas.
O
chamado Comunismo de Guerra, que implicava o confisco da produção do campo, a
proibição de qualquer atividade econômica privada, o racionamento para
privilegiar o Exército Vermelho que lutava contra os brancos e os invasores, a militarização
do trabalho e dos sindicatos com a proibição de greves, a volta da
hierarquização nas fábricas, com isso, a perda de poder dos comitês de fábrica,
a volta da hierarquização também no exército, intensa centralização do poder
político nas mãos do partido bolchevique e, depois, do Comitê Central do
partido.
Vale
lembrar que essas medidas tiveram forte oposição de vários setores sociais que
apoiavam, de modo geral, a revolução. Em especial, a chamada Oposição Operária
e os diversos grupos anarquistas. No interior do próprio Partido Bolchevique as
medidas que caracterizaram o “Comunismo de Guerra” também não eram, de modo
nenhum, unanimidade.
Frente
aos ataques e sabotagens de toda ordem da burguesia, à agressão das potências
capitalistas e mesmo frente ao descontentamento e à oposição interna, foi
organizado um enorme aparelho repressivo centralizado pela Tcheka à qual foram
atribuídos poderes cada vez mais amplos e discricionários.
Com
o fracasso do Comunismo de Guerra, Lenin, à frente do governo, implantou a NEP
– Nova Política Econômica. Em linhas gerais, ela permitia a livre iniciativa na
criação de pequenas e médias empresas de produção e comércio, a volta de muitos
especialistas do antigo regime para as tarefas burocráticas, o retorno e uma
certa liberdade do mercado, a exploração
de pequenas propriedades no campo, a entrada de capitais estrangeiros, o
abandono da requisição forçada de produtos agrícolas e do racionamento, o fim
das trocas diretas, a liberdade salarial e o retorno da moeda como meio de
pagamento. Todavia, o Estado centralizado mantinha o controle geral da economia
e de todo o processo social. Também continuavam a existir a hierarquização nas
fábricas, a indicação dos dirigentes das fábricas pelo Estado e não eleitos
pelos trabalhadores, a rigidez e a intensificação do trabalho, a submissão dos
sindicatos ao Estado, a organização do exército nos moldes tradicionais e o
aparato repressivo cada vez mais forte e atuante.
O
impulso às atividades econômicas, providenciado pela NEP, permitiu um
crescimento da produção e, com isso, uma melhoria geral da vida da população.
Todavia, o atraso no desenvolvimento das forças produtivas ainda era muito
grande. Daí porque, a partir do intenso debate econômico no interior do
partido, surgiram os Planos Quinquenais como forma de impulsionar, de maneira
muito rápida, o desenvolvimento econômico. A construção do socialismo
implicaria, segundo alguns teóricos, uma “acumulação socialista primitiva”.
Além
dessas questões, outros dois elementos importantes integravam a situação russa
pós-revolucionária. Primeiro: a expectativa da revolução em outros países,
especialmente na Alemanha. Sabe-se que os dirigentes bolcheviques tinham claro
que não seria possível caminhar em direção ao socialismo em um país tão
atrasado como a Rússia. Mas, havia fortes indícios de que podia acontecer a
revolução também na Alemanha, o que, provavelmente, arrastaria a França e
outros países capitalistas importantes. Isto levaria à efetivação de uma das
condições fundamentais para a continuidade da revolução: a sua universalização.
Segunda: a convicção de que o capitalismo se encontrava em uma fase agonizante.
Sua fase imperialista juntamente com a sua monopolização estariam a indicar que
ele estaria atingindo seus limites últimos e abrindo as portas para a
possibilidade de construção do socialismo. Esta convicção não era destituída de
bons argumentos, como demonstram as análises de Lenin. Apesar disso, era
equivocada, pois o espaço existente para a reprodução do capital era ainda
bastante amplo.
O
conjunto dessas circunstâncias objetivas configurava um claro beco-sem-saída:
um campo onde a possibilidade de entrar em cena, ainda que de modo processual,
a alma do socialismo, isto é, o trabalho associado (controle livre, consciente,
coletivo e universal da produção, retrocesso do valor de troca e avanço do
valor de uso, com tudo o que isso implica), estava totalmente ausente. Tinha
sido feito o primeiro movimento da revolução – a reabsorção do poder político
pelo conjunto dos revolucionários. Mas, como afirmava Marx, esta era apenas uma
mediação para entrar em cena a alma do socialismo, o trabalho associado. Ausente
essa possibilidade, todo o processo ficava inteiramente bloqueado.
Importante
observar que, ainda que tenham sido cometidos erros, não se tratou nem de
erros, nem de problemas relativos à direção, nem de falta de pessoas
capacitadas, teórica e politicamente, nem de esforço e dedicação. Tratava-se de
uma situação objetiva que não poderia ser superada por nenhuma intervenção da
subjetividade, por mais forte, dedicada e lúcida que fosse. O próprio Lenin,
com toda a sua genialidade, teve que curvar-se diante dessa realidade objetiva
e tomar medidas concretas que iam em direção oposta ao caminho para o
socialismo, como vimos com as medidas assumidas ainda em fins de 1917, depois o
abandono do Comunismo de Guerra e a instauração da Nova Política Econômica.
Por
isso, a meu ver, é equivocado afirmar que há uma ruptura essencial entre o período
leninista e o período stalinista. Ainda que as diferenças sejam imensas, as
linhas de força do campo dentro do qual tanto Lenin quanto Stalin se moveram
eram essencialmente as mesmas (a questão da continuidade ou não entre o período de Lenin e o de Stalin é espinhosa e muito controversa. Duas posições extremas: total continuidade ou total ruptura. Pensamos que há um tertium: uma continuidade na descontinuidade. A descontinuidade se refere à forma com que cada um deles enfrentou a situação e, no caso de Lenin, se estivesse no lugar de Stalin, certamente agiria diante da realidade concreta. A continuidade se refere ao fato de que ambos tiveram que agir dentro de um campo limitado de possibilidades posto pela realidade objetiva. Dentro desse campo, dadas as circunstâncias concretas, não se encontrava, como alternativa, a possibilidade de orientar o processo em direção ao comunismo. Isso é claramente evidenciado pelo fato de que, desde fins de 1917 foram tomadas medidas, apoiadas por ambos, que contribuíram para desviar a revolução do caminho do comunismo. É inegável que há diferenças enormes entre esses dois períodos. Como líder e como teórico, Lenin era incomparavelmente superior a Stalin. Sempre preocupado em analisar a realidade concreta. Stalin era teoricamente muitíssimo limitado. Seu espaço preferido era o jogo do poder. Para ele, a teoria não era um guia para a ação, mas um meio de corroborar as decisões tomadas pelo poder.).
O
stalinismo implicou, certamente, uma inflexão muito profunda nos caminhos
tomados pela revolução. Sua forma específica deve muito às qualidades de
Stalin. Mas, os lineamentos essenciais do processo não seriam alterados
qualquer que fosse o dirigente.
Pode-se, e com bastante razão, imaginar que,
sob a direção de Lenin, o processo revolucionário não teria tomado o caminho do
stalinismo, pois as qualidades dos indivíduos tem um peso diferenciado na história.
Mas, dada a ausência de condições objetivas para caminhar no sentido do
socialismo, os parâmetros essenciais não sofreriam alteração significativa.
O caminho que levaria
à burocratização, à formação de uma casta de funcionários públicos privilegiados,
à criação de um Estado típico (um conjunto de instituições políticas,
jurídicas, militares, repressivas, ideológicas separado do conjunto dos
revolucionários e com plenos poderes sobre a vida de todos os indivíduos,
especialmente os que não se encontravam na direção do Estado), autocrático e
altamente repressivo, ao afastamento das massas de uma participação ativa no
processo, à transformação dos sindicatos em meras correias de transmissão do
Estado, à continuidade da exploração dos trabalhadores, começou a ser tracejado
bem antes
da morte de Lenin. Sabemos que ele mesmo reconheceu a crescente burocratização
sem, contudo, atinar com a raiz do problema e sem poder encontrar qualquer
possibilidade de superá-la.
Nessa situação tornava-se impossível avançar
no processo de fenecimento do Estado, pois isto dependia da eliminação radical da
propriedade privada, das classes sociais e da exploração dos trabalhadores. Ora,
tudo isso dependia de uma radical mudança na forma do trabalho, algo
inteiramente impossível nas circunstâncias dadas. O máximo possível, nessas
circunstâncias, era eliminar, através de um controle do Estado, a propriedade
privada e os aspectos concorrenciais do capitalismo. No entanto, não seria
possível eliminar o próprio capital, pois este se originava da mais-valia
produzida pelos trabalhadores. Esse
processo, como se pode ver em todas as tentativas de revolução socialistas,
podia durar algum tempo, mas, como o próprio Marx já advertira em A
ideologia alemã, não podia, de modo nenhum, se perpetuar e muito menos
representar a transição para o comunismo.
Desse
modo, a revolução se deteve no primeiro momento, o momento político – a
destruição do Estado burguês e a reabsorção do poder político pelos
revolucionários – mas, não pode avançar. Por sua vez, o não avanço em direção à
alma social (trabalho associado) implicou também a degeneração do momento
político: o afastamento das massas da participação ativa no processo (a
democracia proletária). Não foi, portanto, a “falta de socialização do poder
político”, como muitos marxistas afirmam, que impediu a continuidade de
“socialização do poder econômico”. Pelo contrário, foi a impossibilidade de
implementar, efetivamente, nas circunstâncias dadas, a efetiva socialização da
economia – retrocesso do valor de troca e avanço do valor de uso – que impediu
a continuidade e o aprofundamento da democracia proletária.
Pode-se
argumentar, e muito se argumentou, que foi feito “o que era possível” diante da
situação real. Isto, sem dúvida, é verdade. Ou se tomavam essas medidas ou outras
similares ou se entregava o poder de volta ao Czar ou à burguesia. E essas medidas
ou outras similares teriam que ser tomadas qualquer que fosse a direção: Lenin,
Trotski, Stalin, a Oposição Operária ou os anarquistas. A forma mudaria, mas
não o conteúdo essencial. Contudo, o que não se poderia fazer, mas se fez, é
chamar isso de socialismo, isto é, um processo de transição do capitalismo ao
comunismo. Vale observar que isso não significa nem justificar nem condenar o
que foi feito. Trata-se apenas de compreender o processo concreto e dele tirar
as lições para o futuro.
Teórica
e praticamente, as consequências dessa situação concreta foram imensas.
Teoricamente: a teoria marxiana teve que ser, e foi, reformulada, tanto pelos
que apoiavam esse processo quanto por muitos dos seus críticos, de modo a dar
apoio a esse “novo caminho” ou para fazer a crítica dele. Categorias como trabalho,
valor (teoria do valor), socialismo, revolução, Estado, classe e lutas de
classes, democracia, cidadania e outras foram profundamente reformuladas. Criou-se,
assim, uma nova ortodoxia, chamada de marxismo-leninismo e, mais tarde de marxismo-leninismo-stalinismo,
submetida ao controle do Estado e, em última instância, ao Partido Comunista e,
mais ainda, ao Secretário Geral. Neste caso, a teoria deixou de ser uma tradução
teórica do processo real e, assim, um guia para a ação, para transformar-se em
um instrumento para corroborar as decisões tomadas na instância política. Com
isso a formação dos militantes se transformou em mera preparação de ativistas. Dogmatismo
e sectarismo eram as marcas dessa formação. Não mais era permitido pensar,
questionar, estudar com seriedade, pois a teoria era elaborada nos mais altos
escalões dos partidos. A dialética se transformou na “arte de cair sempre de
pé”. Aos militantes cabia apenas aplicar aquilo que ou já estava codificado na
“Bíblia marxista” (Marx, Engels, Lenin e Stalin) ou era decidido nas instâncias
política superiores. A deformação que isso produziu na militância foi
simplesmente devastadora.
Já
fizemos referência, anteriormente, à deformação, teórica e prática, do ideário
marxiano feita pela II Internacional. Com entonações diferentes, a perspectiva
reformista da socialdemocracia alemã foi retomada após a revolução russa,
derivando nas mais variadas tendências do “socialismo democrático”. E até mesmo
de muitas posições que apenas tinham o nome de socialismo, mas eram somente
formas mascaradas de reprodução dos interesses burgueses.
Praticamente:
toda a luta entre capital e trabalho, que se desenrolou desde a revolução russa
até o momento presente foi e continua sendo profundamente tributária do caminho
aberto por aquela revolução. Como demonstra F. Claudín no livro A crise do movimento comunista, toda a
estratégia foi traçada no sentido de proteger o que era proclamado como “a
pátria do socialismo”. Por um lado, todos os partidos comunistas, em todos os
países, seguiram, embora com suas especificidades, o figurino do PC da URSS,
tanto teórica quanto praticamente. Do mesmo modo, a relação entre partidos e
sindicatos e entre Estados (ditos socialistas), partidos e sindicatos também
era organizada nos mesmos moldes da União Soviética. Por outro lado, esse
processo levou ao abandono da centralidade do trabalho em benefício da
centralidade da política, com imensas e perversas consequências para as lutas
dos trabalhadores contra o capital (a esse respeito, ver: Descaminhos da esquerda - da centralidade do trabalho à centralidade da política.).
De
algum modo, todas as outras tentativas revolucionárias socialistas – chinesa,
cubana, vietnamita, norte-coreana – seguiram caminhos semelhantes ao da
revolução russa, enfrentando, também, circunstâncias semelhantes.
O
resultado mais geral de todo esse processo foi o fracasso de todas as
tentativas de superar o sistema capitalista e de caminhar em direção ao
comunismo. Além disso, e como apontamos no texto O grande ausente: a perda, pelos trabalhadores, da perspectiva
revolucionária, teórica e praticamente e a emergência, em seu lugar, do
reformismo e do politicismo.
Certamente, houve
autores que assumiram uma postura crítica face a essa dogmatização. Com
diferentes entonações, podemos citar, entre eles: A. Gramsci, Rosa Luxemburgo,
L. Trotski, G. Lukács, C. Bettelheim, M. Brinton, F. Claudín. Referência
especial merece I. Mészáros, o primeiro a questionar em profundidade o caráter
socialista da revolução russa. Independente
de concordância total, sua obra Para além
do capital é um marco fundamental nesse questionamento.
4. Lições para o nosso tempo
Que
lições tirar de tudo isso? Muitas, certamente. Porém, dada a brevidade do
texto, apenas apontaremos o que nos parece mais importante.
Em
primeiro lugar, do ponto de vista teórico, a necessidade de resgatar a
perspectiva revolucionária. Isto implica retomar o caminho proposto por Marx:
começar pela categoria trabalho como fundante do ser social e, a partir dela,
compreender o surgimento de todas as outras categorias e suas relações.
Compreender, com isso, o processo histórico e social como uma totalidade, com
as devidas mediações, contradições e particularidades. Nunca abandonar o
trabalho como fio condutor de todo o processo histórico.
Importante
assinalar que não basta falar em classes e luta de classes. É preciso
reconstruir toda a concepção de mundo e de método científico cujos fundamentos
foram lançados por Marx, de modo a fundamentar solidamente o caráter
radicalmente histórico e social do mundo humano e a nossa capacidade de
compreendê-lo e também de transformá-lo radicalmente.
Este
ponto de partida permitirá fundamentar a possibilidade e a necessidade da
revolução, da superação radical do capitalismo e da construção de uma sociedade
comunista. Considerando que os acontecimentos históricos deformaram
profundamente todo o ideário marxiano, especialmente os conceitos de comunismo
e de revolução, e enfraqueceram enormemente a crença na sua possibilidade, essa
tarefa é da máxima importância.
Do
mesmo modo, esse ponto de partida e a teoria, fundamentada nele, desenvolvida
por Marx (e outros autores) permitirão fazer a crítica radical do sistema do capital
e compreender a crise atual, alicerçando a ideia de que o aperfeiçoamento e a
humanização do capital são uma impossibilidade absoluta e que a única saída
positiva para a humanidade está na organização de outra forma de sociabilidade
fundada no trabalho associado.
Em
segundo lugar, e a partir daqueles fundamentos, resgatar a natureza da
revolução proletária, deixando claro que ela tem como essência uma mudança
radical na forma do trabalho, isto é, a superação do trabalho assalariado e a
instauração do trabalho associado. Não se trata, portanto, de estatização dos
meios de produção, de planejamento estatal da economia, de supressão
jurídico-política da propriedade privada, mas de controle, livre, consciente,
coletivo e universal dos produtores sobre o processo de produção. Resgatar, com
isso, a verdadeira natureza do objetivo final da luta dos trabalhadores: a
construção de uma sociedade comunista, fundada no trabalho associado. Isso
também permitirá elaborar uma sólida crítica a todo tipo de reformismo e
politicismo (ver, a esse respeito, o artigo: Trabalho associado e revolução proletária.)
Em
terceiro lugar: compreender que o caminho da transição do capitalismo ao
comunismo não passa pela tomada do Estado, mas pela destruição do Estado
burguês e pela reabsorção do poder político pelo conjunto dos revolucionários
como mediação para o combate político à burguesia e para a entrada em cena do
trabalho associado (essenciais, para isso, as obras de Marx: Glosas críticas e A guerra civil na França.)
Para
isso, é da máxima importância rediscutir a problemática do Estado, enfatizando
sua natureza, sua função essencial e as questões relativas à questão do poder
político no processo de transição do capitalismo ao comunismo. Como já tratamos
dessas questões em outro texto – Trabalho
associado e extinção do Estado – remetemos a ele (também é de capital importância ler, a esse respeito, o livro de I. Mészáros: Para além do capital e o importante trabalho de Rafael A. da Silva: Dilemas da transição – um estudo crítico da obre de Lenin de 1917 a 1923.
Também é de
fundamental importância rediscutir a problemática referente ao partido, sua
natureza, sua função como instrumento da classe operária
para a orientação das suas lutas, e a relação entre ele, os sindicatos e as
massas.
Importantíssima lição para o nosso tempo
também é aquela referente à formação de militantes. Na mesma medida em que a
teoria foi sendo transformada em dogma, em receita e em responsabilidade
exclusiva das direções partidárias, a formação dos militantes foi se tornando
cada vez mais estreita, limitada e “catecísmica”. Não era mais preciso estudar,
questionar, investigar. Tratava-se apenas de obedecer e aplicar as “teorias”
produzidas pelas direções. Daí para o dogmatismo e o sectarismo é um passo
muito pequeno. Tudo isso tem que ser repensado em profundidade (a esse respeito, sugerimos a leitura do texto de S. Lessa: Crítica do pratiscismo “revolucionário”. ).
Em
quarto lugar, do ponto de vista prático: organização dos trabalhadores
independente do Estado e do capital. Uma tarefa nada fácil, dadas as estreitas
relações entre sindicatos, Estado e capital que foram sendo construídas ao
longo do processo histórico. Isto implica articular as lutas específicas com o
objetivo geral de superação radical do capitalismo. Implica, também, que o eixo
das lutas esteja fora do Estado e do parlamento e que elas adquiram um tom cada
vez mais anticapitalista e anti-estatal.
Alega-se, muitas
vezes, que o socialismo não está na ordem do dia e que, no momento, a
correlação de forças é desfavorável aos trabalhadores. É a mais pura verdade. Esquece-se, porém, de
examinar o processo que levou a essa situação desfavorável e, inclusive, a
enorme responsabilidade que a estratégia que orientou predominantemente a luta
entre capital e trabalho desde a revolução russa teve nessa configuração.
Esquece-se, também, que correlação de forças se constrói e que não é a soma de
lutas parciais que resultará em acúmulo de forças para a revolução. Se não
houver a articulação entre as lutas parciais e o objetivo mais geral, nunca
haverá acumulação de forças (consciência de classe mais organização
independente) que possibilitará dar um salto de qualidade em direção à
revolução. Jamais haverá acumulação de forças para a revolução se as lutas
priorizarem o campo parlamentar/estatal. Faz-se necessário articular as lutas intra
e extraparlamentares e, mais ainda, imprimir a todas elas um caráter cada vez
mais anticapitalista e anti-estatal.
A modo de conclusão
Apreciar
os imensos e positivos impactos que a revolução russa – e outras tentativas
revolucionárias (chinesa, cubana, vietnamita, etc) teve para a humanidade não
pode nos impedir de questionar em profundidade seu caráter. E afirmar que ela –
e nenhuma das outras – teve um caráter socialista (no sentido de transição para
o comunismo), em nada diminui os enormes benefícios que ela trouxe à
humanidade.
Nossa
intenção, nesse texto, foi argumentar no sentido de que o caráter não
socialista da revolução russa não se deveu a nenhum problema da subjetividade
(erros, medidas eq uivocadas,
problemas de direção, etc.), mas ao fato de que, no campo da realidade
objetiva, não estava presente a possibilidade de trilhar o caminho da transição
do capitalismo ao comunismo. E, a partir dessa constatação, repensar as tarefas
e os caminhos que nos cabem atualmente no sentido de resgatar, teórica e
praticamente, a perspectiva revolucionária.
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Palavras-chave:
revolução russa, socialismo, crise atual, perspectiva revolucionária,
Key words: russian
revolution, socialism, present crisis, revolutionary perspective