sábado, 19 de agosto de 2017

Liberalismo: concepção burguesa de mundo



Por Sérgio Lessa

O liberalismo é a concepção de mundo que melhor justifica o domínio do capital sobre a humanidade. Por isso é uma corrente de pensamento tão importante, tanto para os capitalistas, que nele se apoiam, quanto para os revolucionários, que nele encontram seu principal adversário no campo das ideologias.


A origem do liberalismo

Tudo começou com a crise do modo de produção feudal.  Diferente do modo de produção escravista, no feudalismo o trabalhador, o servo, ficava com uma parte do que produzia. Ainda que uma parte muito pequena, cerca de um quinto, o aumento da produção fazia crescer a parte do trabalhador e, com isto, este último tinha interesse em aumentar a produção. O resultado foi um desenvolvimento das forças produtivas nunca antes conhecido pela humanidade; em poucas palavras, o feudalismo “deu certo”.

E isto gerou as contradições que o levariam ao desaparecimento. Com o crescimento da produção, aumentou também a população e, a partir dos séculos 12 e 13, havia mais gente nos feudos do que necessitava o senhor feudal. Este, então, começou a expulsar dos feudos os servos excedentes que, sem terem onde produzir, começaram a praticar o comércio, aproveitando-se da produção cada vez maior nos feudos.

Naquele período histórico, toda riqueza era retirada diretamente do trabalho manual do servo ou do artesão.  Era esta era a fonte da riqueza dos senhores feudais e da Igreja católica. Com o comércio, contudo, algo que, para eles, era muito estranho, começou a ocorrer. Compra-se um saco de trigo em um feudo que tem trigo de sobra e se o troca por 2 sacos de cevada em um feudo que tem cevada mas não tem trigo. Com estes 2 sacos de cevada, volta-se ao feudo que tem trigo e não tem cevada e ocorre um milagre: os 2 sacos de cevada valem mais do que aquele primeiro saco de trigo.  Hoje, todos nós conhecemos bem o que, então, era um milagre, porque era incompreensível: a lei da oferta e da procura faz com que o preço do trigo e da cevada aumente ou diminua conforme maior ou menor oferta.

Sem que se produzisse nada, o mercador ia se enriquecendo, simplesmente levando uma mercadoria de um canto a outro. Nesta situação, a única coisa que importa ao mercador é se aquilo que ele transporta dará um lucro maior ou menor, ou seja: a lucratividade da mercadoria. Se a mercadoria é um remédio de extrema utilidade, ou uma bomba atômica – pouco se lhe dá: o que importa é o lucro que ele vai tirar da venda da mercadoria. De todas as qualidades do que ele transporta, apenas uma de fato tem importância: o valor de troca.

Esta é a origem do capitalismo: um sistema econômico para o qual a única coisa que tem importância é o valor de troca. As mercadorias serão produzidas se derem lucro – a utilidade para os humanos, ou a necessidade das pessoas, apenas são consideradas quando e se derem lucro. Numa frase famosa de O Capital, Marx comenta que, com sistema do capital, a produção se amplia enormemente, já que a quantidade e a variedade das mercadorias crescem enormemente; contudo, ao mesmo tempo, a produção se restringe também enormemente, porque produz apenas valor de troca.

O capitalismo nascente se encontrou, desde muito cedo, em confronto com o feudalismo. No campo econômico, a principal contradição estava no lucro. No feudalismo, como o comércio era muito restrito, o lucro tinha um papel econômico muito pouco importante. Para os comerciantes, contudo, o lucro era sua única razão de existir, o único móvel de sua atividade econômica. Para os comerciantes tudo deveria se converter em mercadoria. Para isso era preciso retirar os servos dos feudos e convertê-los em trabalhadores assalariados e, ao mesmo tempo, era preciso tirar as terras dos nobres para convertê-las em mercadorias. Em poucas palavras, era preciso destruir a economia feudal para que a economia capitalista pudesse se desenvolver.

Esse antagonismo na economia tem seu reflexo no mundo das ideias.  De um lado a Igreja e os senhores feudais  justificavam seu domínio a partir da concepção de que Deus criou o universo e, se existem senhores feudais e servos, é porque isto corresponderia aos desígnios divinos. De outro lado, os comerciantes tinham a necessidade de desenvolver uma concepção de mundo que se contrapusesse à feudal – e que justificasse porque o mundo ideal seria o mundo capitalista, burguês.

A concepção de mundo criada pela burguesia para justificar o capitalismo é o liberalismo.  Seus primeiros pensadores significativos surgem no Renascimento Italiano, mas os seus pensadores mais importantes viveram durante os séculos 16 e 18, nos Países Baixos, na Inglaterra e na França e, na passagem do século 18 ao 19, na antiga Alemanha.


O liberalismo revolucionário

Entre os séculos 16 e 19, a burguesia evolui, de uma classe de comerciantes submetida aos poderes feudais, a uma classe dominante de todo o planeta. Economicamente, desenvolveu as rotas comerciais no interior da Europa e, entre 1450 e 1650, criou o mercado mundial. Com isso, a produção de mercadorias passou a ser realizada não mais pelos artesãos medievais, mas pelas manufaturas, que vão se desenvolvendo até que, na segunda metade do século 18, inicia-se na Inglaterra a Revolução Industrial. 

Foram nesses séculos que tivemos as duas primeiras revoluções na história, a Revolução Inglesa do século 17 e a Francesa do século 18. Estas duas revoluções foram decisivas para se superar o modo de produção feudal e para estabelecer a sociedade burguesa em sua maturidade.

E foi ao longo destes séculos (do 16 ao 19) que se desenvolveu o liberalismo revolucionário, isto é, a concepção de mundo da burguesia que, então, era a classe revolucionária.

Para justificar, do ponto de vista econômico, o capitalismo, surge o liberalismo econômico. A Economia Política é a ciência liberal-burguesa criada para explicar o que é e como funciona o capital, para se compreender “de onde vem a força do dinheiro”.  Seus grandes representantes são Adam Smith (1723-1790) e David Ricardo (1722-1823).

Para justificar do ponto de vista político sua luta pelo poder, a burguesia vai desenvolver o liberalismo político, cuja pedra de toque é a ideia de um contrato social. Isto é: um governo legítimo é aquele que nasce de um livre acordo entre os governados, e não por uma imposição, como eram as monarquias hereditárias da época.

Para justificar a nova ciência imprescindível para desenvolver as forças produtivas do capital, os dois grandes cientistas foram Galileu Galilei (1564-1642) e Newton (1643-1727). Eles destruíram a concepção medieval de um universo finito em cujo centro se encontraria a Terra.

E, para justificar – como um todo – a sociedade burguesa que estava nascendo, a burguesia desenvolve o liberalismo filosófico, cujos principais representantes são Descartes e Bacon, na geração seguinte Hobbes (1578-1689) e Locke (1632-1704), depois Kant (1724-1804) e Rousseau (1712-1778) e, finalmente, o grande pensador burguês, Hegel (1770-1831).

O liberalismo, em sua fase revolucionária, trata de todos os aspectos da vida humana, da ciência à economia, da filosofia à política: é uma autêntica concepção de mundo.

Os princípios do liberalismo revolucionário

Os princípios mais importantes do liberalismo, em sua etapa revolucionária, são o individualismo e o conceito de natureza humana.

Para os filósofos, economistas, cientistas e políticos burgueses, o ser humano seria dotado de uma natureza imutável. Tal como a natureza dá à pedra uma natureza de pedra; à agua, uma natureza de água, também daria ao ser humano uma certa natureza. O ser humano seria racional, viveria em sociedade e seria um proprietário privado, por isso, mesquinho, egoísta e concorrencial.

Tal como a natureza da pedra, da água etc. seriam imutáveis, a natureza humana seria também imutável. Seríamos, por isso, necessariamente e para todo o sempre, seres concorrenciais, mesquinhos, dos quais a única razão de viver seria acumular riqueza na concorrência com todos os outros.

Este egoísmo e esta mesquinharia, este individualismo foi avaliado de modo muito diferente pelos diversos pensadores da burguesia revolucionária. Hobbes avaliava que era uma ameaça à sociedade e, para controlá-la, seria preciso um Estado absolutista, o Leviatã. Adam Smith julgava que este egoísmo seria a fonte de toda prosperidade social, argumentando que a busca do enriquecimento (pelos indivíduos) faria com que se produzisse mais, se gerasse empregos, fazendo, assim, que o egoísmo do indivíduo se convertesse em prosperidade de todos pela “mão invisível do mercado”. Contudo, independente de como fosse avaliado, todos concordavam que o egoísmo e a mesquinharia das pessoas (seu individualismo) eram características eternas dos seres humanos.

Como, então, organizar uma sociedade justa, se os indivíduos não fazem outra coisa senão concorrer entre si, senão disputar constantemente a riqueza? Como fundar uma ordem social justa se a relação social predominante é todos roubando de todos?

Vejam: esses pensadores não estavam inteiramente equivocados. Observando-se a sociedade burguesa (daquele período, mas, também, a do presente), não é difícil a constatação de que todos lutam contra todos, que, de fato, como queria Hobbes, o homem é o lobo do próprio homem. Na análise da sociedade de então, esses pensadores não estavam equivocados. O equívoco estava em imaginar que a essência burguesa dos homens fosse eterna, que os homens sempre foram e sempre seriam, tal como os burgueses, mesquinhos, concorrenciais, egoístas, em uma palavra: individualistas. Hoje, sabemos que não é assim: na história, este individualismo apenas existiu quando os homens foram alienados pelo capital; apenas na sociedade burguesa há esta expressão de individualismo.

Foi também observando a sociedade de então que se atinou com uma proposta para a organização da sociedade. Dois comerciantes, um que compra e o outro que vende, possuem interesses rigorosamente opostos: ambos querem ganhar, mas apenas é possível um ganhar se o outro perder e vice-versa. Contudo, mesmo com esta contradição insuperável entre eles, pode-se fazer um contrato e comércio entre eles pode ter lugar.

Do mesmo modo, raciocinavam muitos pensadores da burguesia revolucionária, poder-se-ia fazer um acordo entre todos para criar uma sociedade que garantisse os interesses mínimos de todos os seus membros. A ideia de um acordo geral de todos os cidadãos é o Contrato Social, seus defensores foram denominados contratualistas. Os dois mais importantes contratualistas são Locke e Rousseau. Há grandes diferenças entre eles, mas o núcleo que têm em comum é o que nos importa: a defesa do contrato social como a maneira de se organizar uma nova sociedade que possibilitasse a livre atividade dos burgueses.

Da concepção de que as pessoas são, por natureza imutável, proprietárias privadas e, por isso, individualistas, decorrem as principais características do contrato social que ambos propõem. Em primeiro lugar, reconhecem que o maior bem, além da vida, é a propriedade das pessoas.  Assim, o contrato social deve defender a vida e a propriedade privada de todos. 

Contudo, como pela concorrência alguns irão se enriquecer e, outros, se empobrecer, a defesa da propriedade privada de todos não pode se contrapor à existência e mesmo ao crescimento da desigualdade.  Como isto é possível? Defendendo-se:

1) que todos são proprietários privados: pelo menos de suas posses e de suas forças de trabalho;

2) que todos são iguais perante a lei e, por isso, o novo contrato social não vai proteger o pobre do rico;

3) que, quando alguns indivíduos se enriquecem, toda a sociedade sai ganhando, pois – como disse Smith – surgem novos empregos, o comércio é estimulado etc. e, deste modo, tem lugar a prosperidade coletiva. O direito supremo a ser garantido pelo contrato social, depois da vida, é o da propriedade privada: com isso se legitima a concorrência e a desigualdade inevitável que dela surge.

4) que a ordem política justa é a democrática-eleitoral. Organiza-se a luta pelo poder ao redor da manifestação dos cidadãos pelo voto. Nada mais de monarquias hereditárias!

5) separa-se a ciência da religião e da filosofia: agora o capital pode desenvolver o conhecimento científico que necessita, pois não mais precisa se preocupar com os obstáculos impostos pela filosofia e pela religião. A ciência moderna surge e se desenvolve com a função prática de fornecer tecnologias cada vez mais desenvolvidas para aumentar a lucratividade na produção de mercadorias. A ciência ganha um acento prático que não tinha na mesma intensidade: sua razão de existir fundamental passa a ser o desenvolvimento da tecnologia para o capital.

Com esta concepção de mundo, centrada no individualismo e na propriedade privada, o feudalismo foi derrotado em duas grandes revoluções, a inglesa e a francesa, e a humanidade foi convertida em um mercado mundial. A burguesia se elevou, então, em classe dominante em todo o planeta. Deixou de ser uma classe revolucionária e se converteu em uma classe contrarrevolucionária e a sua concepção de mundo, o liberalismo, se converteu então, de revolucionário em contrarrevolucionário.

O liberalismo contrarrevolucionário

Como é possível que uma mesma teoria que, por séculos, liderou a luta contra o absolutismo feudal, que colocou a democracia como um valor universal, que levantou a bandeira dos direitos iguais para todos, que converteu todos os súditos de reis absolutistas e tiranos em cidadãos (com comuns direitos e deveres), que proclamou os Direitos Universais do Homem e do Cidadão, que afirmou o direito à revolução de povos oprimidos por tiranos – como é possível que esta teoria, sem passar em seu conteúdo por qualquer mudança essencial, possa ter se convertido em uma concepção de mundo contrarrevolucionária?

Pela mudança radical da situação histórica e, com ela, das necessidades e possibilidades que se impuseram à humanidade.

A Revolução Francesa (1789-1815) e a Revolução Industrial (1776-1830) alteram tudo.

O aumento da produtividade do trabalhador lançou a humanidade, pela primeira vez na história, no período da abundância. Isto significa, muito brevemente, que com uma oferta maior do que a procura, o mercado deixou de funcionar: os preços tendem a cair abaixo do custo de produção, o que inviabiliza todo funcionamento da economia burguesa. Sem preços “compensadores”, a burguesia suspende a produção, o desemprego aumenta e toda a economia entra em crise. Das crises cíclicas à crise estrutural que se inicia nos anos de 1970, é apenas uma questão de intensificar as contradições do sistema do capital: a abundância inviabiliza o mercado e, com isso, toda a economia voltada à produção de mercadoria torna-se historicamente inviabilizada.  Desde o fim da Revolução Industrial, até os nossos dias, houve mais anos de crise que de prosperidade.

Se a Revolução Industrial nos colocou na era da abundância, a Revolução Francesa eliminou os últimos resquícios importantes do feudalismo. Abriu aos burgueses um enorme mercado e, ainda mais significativo, liberou dos feudos uma enorme massa de trabalhadores que agora, para sobreviverem, tinham como única alternativa vender sua força de trabalho ao capital. Chegamos ao capitalismo maduro.

O capitalismo abriu, para a humanidade, um conjunto de possibilidades e necessidades qualitativamente novas. Do ponto de vista da economia, é imprescindível se passar a uma produção que não mais dependa do mercado – pois este já não mais funciona. Para se superar o mercado, é imprescindível superar a produção voltada para o lucro, é preciso passar-se a uma produção do que é necessário aos seres humanos, e não daquilo que é lucrativo. Deve-se passar do trabalho proletário ao trabalho associado.

Para isto é preciso eliminar o capital, pois este impõe à economia uma produção centrada no lucro.  Para se eliminar o capital, é imprescindível eliminar a burguesia, a classe que é a personificação do capital. Em suma, com a abundância e o fim do feudalismo, a humanidade passa a ter como necessária – e como uma possibilidade real – a superação do capitalismo por uma sociedade sem classes, cuja produção esteja voltada ao atendimento das necessidades humanas (e não ao acúmulo de lucros).

É preciso, agora, uma nova concepção de mundo que evidencie a essência desumana, alienada da propriedade privada e da sua forma contemporânea: o capital. Esta, precisamente, é a função histórica da obra de Marx e Engels, o marxismo.  É esta mudança da situação histórica que fez do liberalismo uma ideologia contrarrevolucionária.


O individualismo e a liberdade

Contra o feudalismo e o absolutismo, o liberalismo revolucionário afirmava, como vimos, que o indivíduo tem uma natureza, uma essência, que lhe é dada pela natureza de uma vez para sempre. Como parte desta essência estão o direito à propriedade privada e o individualismo. Agora, na era da abundância, o liberalismo apresenta o mesmo argumento. Como o ser humano seria por essência imutável um egoísta proprietário privado, por pior que seja a sociedade burguesa, não haveria melhor alternativa. Os males da sociedade não seriam resultado de uma organização desumana da produção, mas de um defeito incorrigível (e de nascença) de todos nós: seríamos todos incorrigivelmente burgueses.

O individualismo e o egoísmo seriam o limite da história humana: não seria possível superar esta essência imutável dos indivíduos e, por isso, também não seria possível uma sociedade que não fosse ordenada pela concorrência, pelo mercado e pelo lucro, justamente a sociedade capitalista.  O máximo de liberdade que poderia ser conseguida é a liberdade do mercado e da democracia. O máximo de igualdade que poderia ser conseguida é a do mercado, na qual todos são proprietários privados, e da democracia, em que todos são cidadãos. Todos quer dizer: proletários e burgueses, igualmente.

A concepção de mundo liberal transformou-se, assim, de revolucionária em contrarrevolucionária, acompanhando o destino histórico da classe que a criou. A defesa do individualismo, da propriedade privada, do mercado como regulador das disputas econômicas e de uma disputa pelo poder do Estado regulamentada democraticamente – ideias que, entre os séculos 16 e 19, tinham a força de concepções revolucionárias – se converteram na defesa do poder do capital sob a humanidade, se converteram em ideias contrarrevolucionárias. Não porque mudou a essência destas ideias, mas porque se alterou essencialmente a situação histórica.

As transformações do liberalismo no século 20

O desenvolvimento do capitalismo e a intensificação de suas contradições levou o liberalismo a várias mudanças. A mais importante ocorreu na economia, em que uma parte dos liberais passou a defender uma maior intervenção do Estado.

Ao final do século 19, após a crise de 1870-71, começou se tornar claro que a intervenção do Estado na economia, estava se tornando cada vez mais urgente - na medida em que a instabilidade do sistema capitalista se intensificava com o constante aumento da superprodução.

O Estado deveria intervir na economia de três modos.

O primeiro, comprando. Ampliar o poderio bélico desenvolvendo o complexo industrial-militar era uma excelente alternativa, provocar guerras de tempos em tempos, uma alternativa ainda melhor (desde que se ganhasse a guerra, naturalmente). Outra maneira importante é através das políticas públicas. Um programa nacional de saúde faz com que o Estado se torne grande comprador de remédios e de toda ordem de produtos farmacêuticos e, ainda, contrate a construção de hospitais, laboratórios etc. Esta é a origem do complexo farmacêutico hospitalar de nossos dias. As grandes encomendas estatais são, não apenas para a área da saúde, um grande reforço para a lucratividade do capital. 

O segundo modo pelo qual o Estado deveria intervir na economia é subsidiando o custo da reprodução da força de trabalho. Se o Estado oferece escolas públicas, saúde pública, transporte público gratuitos ou fortemente subsidiados, o salário que o capitalista tem que pagar ao trabalhador pode ter menor valor, pois o trabalhador tem agora uma série de serviços gratuitos ou muito mais baratos, fornecidos pelo Estado. Se o salário pode ter um valor menor, a mais-valia correspondentemente se amplia e aumenta a lucratividade do sistema o capital como um todo (conferir no Jornal Espaço Socialista, nº 81, o texto sobre mais-valia). Claro que, este segundo modo coincide, em alguma medida importante, com o primeiro. Pois ao oferecer escolas públicas, transporte público etc. o Estado passa a comprar tudo o que é necessário para tais serviços e, desta forma, contribui para o controle da superprodução.

O terceiro modo pelo qual o Estado deveria intervir na economia é intensificando o consumo dos indivíduos. O principal estímulo ao consumo é a oferta de crédito subsidiado ou com juros baixos pelos bancos estatais. Há outros mecanismos, como a regulamentação de uma rede de comunicação de massa imprescindível para que a propaganda faça-nos comprar não apenas o que não necessitamos, mas até mesmo o que nos é prejudicial; a regulamentação de uma menor jornada de trabalho para que as pessoas possam consumir mais etc. Mas, o fundamental mesmo, nesta área, é uma política de créditos que incentive o consumo. 

Sem abandonar o individualismo possessivo, a defesa do mercado e da propriedade privada, sem deixar de lado a defesa de que a democracia e o mercado são os maiores espaços de liberdade possíveis à humanidade, surgiu uma vertente dentro do liberalismo que defende um Estado economicamente mais ativo como meio de controle das crises econômicas.  Essa vertente autodenominou-se de liberalismo social e, na economia, sua principal vertente é o keynesianismo.


O liberalismo social e o Keynesianismo

A ideia chave do liberalismo social é que o Estado deveria intervir na economia. Como parte desta intervenção deveria ocorrer sob a forma de políticas públicas que oferecessem educação, saúde, transporte, cultura (museus, parques, esportes etc.) para os cidadãos, o liberalismo social se apresenta como defensor dos interesses não apenas dos burgueses, mas principalmente dos trabalhadores e dos proletários – por isso, o “social”.

A ideia chave do keynesianismo é que se deveria promover um “círculo virtuoso”: aumentar a produção, tornando assim as mercadorias mais baratas; com mercadorias mais baratas, aumenta-se o consumo; com maior consumo, maior a produção, preços mais baixos e, novamente, maior consumo. Os keynesianos (muitos deles, no Brasil de hoje, são petistas e defendem o “desenvolvimentismo” de Lula e de Dilma) propõem que a crise deve ser enfrentada por grandes investimentos estatais os quais, ao aquecer a produção, colocariam a economia no círculo virtuoso – quanto maior a produção, menores os preços, maior a produção e assim sucessivamente.

O liberalismo social e o keynesianismo se converteram, principalmente depois da crise de 1929, na base ideológica da socialdemocracia e dos reformistas em geral. A tresloucada ideia de que seria possível fazer o capitalismo evoluir de “selvagem” a “humano”, através de uma correta política econômica que promovesse uma adequada intervenção do Estado na economia, é a base de todo reformismo. Quer o reformismo assim o confesse ou não. E, esta base possui, sempre, elementos do liberalismo social e do keynesianismo.

Enfim...

O liberalismo é, em uma frase, a concepção de mundo burguesa por excelência. Nasceu, se desenvolveu, cumpriu seu papel revolucionário e se converteu no “neoliberalismo” de nossos dias, acompanhando a trajetória histórica da classe que é sua criadora.  Seu núcleo teórico-ideológico mais importante é a concepção de que a natureza dotou os seres humanos de uma essência egoísta que não pode ser alterada. E que esta essência é nosso limite histórico: a melhor sociedade, a burguesa, é aquela que reconhece esse individualismo e que se organiza ao redor dele. Daí a ideia da “liberdade” do mercado e da “liberdade” da democracia.

A crítica de Marx e Engels ao liberalismo foi arrasadora. Não foi a natureza que criou a humanidade, mas a humanidade criou a si própria pelo trabalho. Ao descobrirem o trabalho como a categoria que fundou a humanidade, eles conseguiram mostrar como a humanidade fez-se a si mesma. Já nos fizemos seres humanos primitivos, depois nos transformamos em escravistas, em seguida nos convertemos em feudais e, depois, nos fizemos burgueses. A humanidade é a única responsável pela sua história: se nos fizemos burgueses, podemos, também, nos fazer comunistas através de uma revolução que revolucione o modo de produção e, também, a essência individual de cada um de nós.

Em largos traços, esta é a importância do liberalismo e, correspondentemente, o significado da obra de Marx e Engels para a nossa história.

Indicações de leitura:

H. J. Laski, O liberalismo europeu é um texto importantíssimo; de Lenin, O Estado e a revolução; de Marx, Crítica aos programas de Gotha e Effurti e de Engels, Do socialismo utópico ao científico são textos em que diversos aspectos essenciais do liberalismo são abordados e criticados. De Ivo Tonet, Liberdade ou democracia, uma coletânea de textos há muito esgotada, mas que pode ser baixada no site (www. ivotonet.xpg.uol.com.br).


Em largos traços, esta é a importância do liberalismo e correspondentemente, o significado da obra de Marx e Engels para a nossa história.


sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Por que a sociedade criou a opressão das classes sociais?



Sérgio Lessa

Esse texto é uma “introdução” ao Materialismo histórico.  O fenômeno das classes sociais primeiro que é muito recente na histórica da humanidade e segundo que o seu surgimento, consolidação e como se tornarem obsoletas tem explicação na forma que as relações de produção – a forma de produzir e apropriar da riqueza social– se desenvolveu ao longo da história humana.

É a partir dessa compreensão que podemos entender que o materialismo é uma explicação de mundo superior ao idealismo.

O fenômeno das classes sociais primeiro que é muito recente na histórica da humanidade e segundo que o seu surgimento, consolidação e como se tornarem obsoletas tem explicação na forma que as relações de produção – a forma de produzir e apropriar da riqueza social– se desenvolveu ao longo da história humana.

Vivemos uma situação quase misteriosa. Nunca se produziu tanta riqueza e nunca os suicídios foram tão numerosos, nunca tantos viveram uma miséria socialmente tão insuportável. A insatisfação com a vida e a infelicidade pelo destino são emoções comuns a todos nós. A sociedade de classes é a expressão acabada dessa situação: alguns são “mais”, outros... E, contudo, as classes sociais são criações nossas: nós as criamos e nós as reproduzimos dia após dia. Por que?

Porque somos egoístas proprietários privados; porque somos ambiciosos, queremos sempre mais do que temos. A vida não pode ser outra coisa que a concorrência de todos contra todos. Os homens são os lobos dos homens. Essa é a resposta mais frequente e mais comum. Também a mais conservadora. E não é por acaso.

Vivemos em uma sociedade em que todos concorrem com todos por um “lugar ao sol”. Fácil, portanto, para a ideologia burguesa, generalizar esse fato da vida cotidiana em uma explicação de mundo. Essa é uma das justificativas ideológicas mais fortes da sociedade presente: como somos egoístas, nada pode ser melhor do que a sociedade do capital.

O fato de ser uma teoria tão próxima da nossa experiência cotidiana, contudo, não a torna necessariamente verdadeira. Nesse caso, o oposto é mais correto: sua falsidade está justamente em que pretende que a vida cotidiana dos nossos dias vale igualmente para todas as sociedades presentes, passadas e futuras.

Essa explicação é falsa. No período primitivo (cerca de 90% da existência da humanidade), a forma predominante de relação entre os indivíduos foi a cooperação. As sociedades primitivas simplesmente não poderiam se reproduzir sem a cooperação cotidiana de todos os seus membros.

O texto de Leacock, indicado ao final, é, aqui, muito útil. Nas sociedades pré-capitalistas, houve formas muito desenvolvidas e sofisticadas de cooperação que não poderiam existir com a atual concorrência entre os indivíduos. A história demonstra a falsidade da ideologia burguesa de que sempre fomos os indivíduos egoístas, proprietários privados, que hoje, de fato, somos.

Se, portanto, a explicação conservadora sobre a origem das classes sociais não tem fundamento, de onde elas surgiram?

Os dados arqueológicos disponíveis indicam que a humanidade surgiu na África há aproximadamente 100 mil anos atrás (novas descobertas podem recuar ainda mais essa data). Até chegarmos à Revolução Neolítica há 12 mil anos (portanto, por 88 mil anos) transcorreram o período primitivo. Nele, a humanidade apenas tirava da natureza o que já encontrava pronto para a coleta. Devido a esse baixíssimo desenvolvimento das capacidades de produzir, as sociedades eram pequenas (bandos ou tribos) e viviam se deslocando em busca de comida (nomadismo). O que se produzia, consumia-se imediata ou quase imediatamente. Não havia possibilidade de se acumular nada, pois a carência era tão grande que se consumia tudo o que se produzia e se produzia apenas aquilo que poderia ser imediatamente consumido.

Essa situação passou por uma mudança radical com a Revolução Neolítica, que é a descoberta da agricultura e da pecuária. Plantar e criar animais foram as primeiras formas que a humanidade descobriu de organizar as forças da natureza para produzir o que necessitamos. Colocar uma semente no chão, criar um boi ou porco significam ordenar processos da própria natureza para produzirem o que os humanos necessitam. Com isso a produção aumentou muito e, o que é mais importante, prossegue aumentando até os nossos dias.



TRABALHO EXCEDENTE

Nas sociedades primitivas, apenas nos melhores dias o que os indivíduos produziam era suficiente para o sustento. Na maior parte das vezes, a produção era insuficiente. Nunca vivemos em uma carência tão grande como aquela do período primitivo.

A Revolução Neolítica transformou radicalmente essa situação. O que um indivíduo produz na agricultura e na pecuária é mais do que o necessário para sua sobrevivência, ou seja, sua capacidade de trabalho excede às suas necessidades pessoais. Isto é o “trabalho excedente”: caso a pessoa trabalhe tudo o que conseguir, produzirá mais do que o necessário para sua sobrevivência.

O surgimento do trabalho excedente abriu novas necessidades e possibilidades para a humanidade.  Possibilitou as primeiras vilas e cidades, as sociedades foram se tornando cada vez maiores, em poucos milhares de anos surgiram os Impérios da Antiguidade (Babilônia, Egito, Grécia etc.). Avançou a divisão de trabalho e a produtividade do trabalhador não parou de crescer. A tecnologia avançou, o comércio se desenvolveu, o dinheiro fez sua aparição entre os homens, algumas das grandes obras de arte da história foram, então, produzidas, etc.

O trabalho excedente nasceu, contudo, com uma limitação que levaria milênios a ser superada, a saber, não era suficiente para atender a todas as necessidades de todos os indivíduos da sociedade. Veja: a pessoa que trabalha produz mais do que necessita (o trabalho excedente), mas a produção excedente não é ainda suficiente para atender a todas as necessidades até mesmo dos indivíduos que não trabalham – lembremos que uma parte significativa da sociedade não produz ou produz muito pouco (crianças, velhos, etc.). Por isso o surgimento do trabalho excedente significou a crescente diminuição da carência, mas não possibilitou a superação da carência. Essa superação apenas viria com a Revolução Industrial (1776-1830), com a entrada da máquina a vapor no processo produtivo. Até lá, entre a Revolução Neolítica e a Revolução Industrial, trabalho excedente e carência estiveram sempre presentes.

Não há dúvidas de que o surgimento do trabalho excedente trouxe vastas consequências históricas. Uma delas, contudo, se destaca como a mais importante: da articulação do trabalho excedente com a carência resultou não apenas a possibilidade, mas também a necessidade das sociedades de classe. Veremos a razão básica dessa necessidade.


POR QUE AS CLASSES FORAM NECESSÁRIAS

A partir do momento em que o trabalho excedente se articulou com a carência, abriu-se duas grandes possibilidades para o futuro da humanidade:

A primeira delas, no início a mais comum e frequente, era quase uma continuidade do igualitarismo das sociedades primitivas: a riqueza era distribuída com justiça.

A vida, então, melhorou muito e para todos, de uma maneira bastante uniforme. Contudo, como o produzido não era suficiente para atender a todas as necessidades de todos os indivíduos, como tudo era consumido, nada sobrava para desenvolver as forças produtivas. Como vimos, com a carência, todo o produzido, era consumido. A cada safra ou a cada estação de caça, partia-se sempre do mesmo ponto: do nada, pois tudo havia sido consumido.

Há, contudo, uma segunda forma de sociedade que destina uma parte da produção para o desenvolvimento das forças produtivas, o que possibilita que estas se desenvolvam muito mais rapidamente. Essa forma nos é familiar:

1) “convence-se” a quem produz que fique apenas com o estritamente necessário para sua sobrevivência física e que entregue o trabalho excedente para uma minoria da sociedade;

2) essa minoria, de posse do produto do trabalho excedente, tem interesse em aumentar ainda mais sua riqueza pelo desenvolvimento de seus negócios, o que implica em aumentar a produção, em construir estradas, navios, portos etc. – ou seja, implica no desenvolvimento das forças produtivas. O “único” problema, então, era determinar quem seria o trabalhador explorado e quem faria parte da minoria exploradora. Essa questão não pode ser resolvida por nenhuma outra forma senão pela violência: a guerra foi, assim, o rebento e, ao mesmo tempo, a parteira, das sociedades de classe.


A VIOLÊNCIA

Todas as sociedades de classe (nas Américas, no Oriente Próximo ou na Ásia) surgiram pela guerra: uma “civilização” se expande conquistando pela guerra as tribos ou bandos em sua vizinhança, convertendo os derrotados em escravos (no caso do escravismo) ou em camponeses (no caso do modo de produção asiático). Dos Impérios da Antiguidade (Babilônia, Egito, Fenícia, Pérsia, Grécia, Cartago e Roma), do mercado mundial da época de Vasco da Gama e Cristóvão Colombo passamos aos nossos dias, em que o capitalismo destruiu as últimas sociedades primitivas.

Todo esse desenvolvimento histórico foi baseado na violência. Apenas pela violência cotidiana é possível “convencer” o trabalhador a entregar o que produz à classe dominante; apenas pela violência cotidiana a classe dominante podeconverter a riqueza produzida pelo trabalhador em sua propriedade privada. Isso vale para todas as sociedades de classe. Do escravismo aos nossos dias, a violência pode mudar de forma e as instituições que a aplicam podem não ser sempre exatamente as mesmas, contudo, sem violência não há propriedade privada, pelo sensato fato de que sem violência não há exploração do homem pelo homem que subsista.

Podemos, agora, compreender a causa fundamental da origem das classes sociais: surgem porque são, enquanto houver carência, a forma de organização social que possibilita o desenvolvimento mais acelerado das forças produtivas. Tal como as sociedades de classes tomaram o lugar das sociedades primitivas porque desenvolvem mais rapidamente as forças produtivas, também no interior das sociedades de classe conhecemos um desenvolvimento que faz com que, modos de produção que permitam um superior desenvolvimento das forças produtivas, tomam o lugar daqueles que impõem limites ao seu desenvolvimento.

Da sociedade primitiva fomos às sociedades de classes e, no interior dessas, do escravismo, ao feudalismo e à sociedade capitalista – o novo modo de produção sempre elevando as forças produtivas a um patamar superior ao do que o precedeu.

O desenvolvimento das forças produtivas, ao conduzir a humanidade ao capitalismo, terminou produzindo indivíduos que, por viverem uma vida cotidiana de plena concorrência de todos contra todos, imaginam que sempre foi assim na história passada e que, por isso, deverá ser também no futuro. Nada poderia ser mais falso: as sociedades de classes não surgem devido a qualquer qualidade particular dos indivíduos, não surgem porque eles são egoístas ou cooperadores, porque são solidários ou gananciosos, etc.

Em resumo: a sociedade de classe surgiu porque, no longo período histórico desde a Revolução Neolítica (aproximadamente 11 mil anos atrás) até a Revolução Industrial (1776-1830), período esse em que se articula o trabalho excedente com a carência, foi a forma de organização social que melhor possibilitou o desenvolvimento das forças produtivas.


ESTADO E FAMÍLIA MONOGÂMICA

As sociedades de classe são, portanto, uma consequência histórica do desenvolvimento das forças produtivas. Jamais foram uma decorrência das qualidades ou defeitos dos indivíduos, nem muito menos, foram uma decisão conscientemente tomada pela humanidade. A ideologia burguesa está completamente equivocada, e não é um equívoco ingênuo, pois corresponde às necessidades ideológicas da classe social que nos oprime, que joga nas costas dos indivíduos a responsabilidade por nossas misérias.

As sociedades de classe marcam um longo período histórico em que a aceleração do desenvolvimento das forças produtivas necessariamente é acompanhada pela destruição de uma parte da humanidade. Esta é uma das características mais marcantes das alienações que surgem com a exploração do homem pelo homem: desenvolvem-se as capacidades humanas em tirar da natureza o que se necessita pelas mesmas relações sociais que mantêm na miséria a maior parte das pessoas. Nunca, em um período histórico tão longo, se produziu socialmente tanta riqueza e, nunca, também, tantos tiveram negado o acesso a essa mesma riqueza.

Como mencionamos, as sociedades de classes surgem pela guerra e apenas podem se reproduzir pela violência: não há outra forma de excluir do usufruto da riqueza a maioria dos membros de uma sociedade, ainda mais se essa for a porção que produz toda a riqueza social. É para administrar essa violência na vida cotidiana que surgiram dois complexos sociais que sobrevivem até os nossos dias: o patriarcalismo (a família monogâmica) e o Estado.

O Estado é o instrumento especial para a repressão dos trabalhadores. A classe dominante sabe, desde o primeiro momento, que sua mera existência depende de uma organização capaz de exercer a violência sobre a classe que produz a riqueza (seja ela os escravos, os servos ou os proletários de nossos dias). Essa organização começa pelo exército (que, depois, vai se desdobrar nas forças policiais de todos os tipos). Um exército, contudo, custa caro: é preciso que se paguem impostos para cobrir esse custo. Impostos implicam em funcionários públicos para coleta-los e, implicam também, em regras claras sobre quanto cada um deve pagar e o castigo se não o fizer. Para criar essas regras e aplica-las no dia a dia é preciso o complexo do Direito (juízes, juristas, advogados, promotores, torturadores etc.). Exército, funcionários públicos (a burocracia) e o Direito (também membro da burocracia): isto é o Estado. Por isso, sempre que os oprimidos se revoltarem, encontrarão por parte do Estado o tratamento que lhes cabe na sociedade de classes: violência.

Além da totalidade da sociedade, com o surgimento das classes sociais também a menor instituição social, a família, passou por uma mudança importante: a família comunal da sociedade primitiva foi substituída pela família monogâmica.

Como a riqueza que vem dos escravos (ou, no modo de produção asiático, dos camponeses) requer a guerra e a violência, a propriedade privada entrou na história como um atributo masculino. Isso porque, nas sociedades primitivas, a sobrevivência das mulheres sempre foi mais importante que a dos homens. Por um simples fato a nós legado pela natureza: a quantidade de bebês que uma tribo ou bando pode ter depende, diretamente, do número de mulheres. A morte de uma mulher tem um impacto muito maior, tipicamente, sobre a capacidade de reprodução da sociedade, do que a morte de um homem. Por isso a guerra surge como tarefa dos homens e, a riqueza que vem da expropriação dos derrotados, vai paulatinamente se convertendo em riqueza dos homens.

Com a sociedade de classes já amadurecida (Egito, Grécia, Roma e, no Oriente, Império Chinês, Japonês, na Índia, etc.) as mulheres apenas podem ter acesso à riqueza social se servirem aos homens que são os proprietários privados. Essa é a origem da opressão feminina que marca as sociedades de classe, esse o fundamento do patriarcalismo. A forma típica de organização da família patriarcal é a família monogâmica, isto é, a monogamia apenas para as mulheres. Para os homens surge uma nova instituição, a prostituição, que é a comprovação prática e cotidiana de que somente para as mulheres a monogamia é obrigatória. Mesmo hoje, com todas as transformações que a crise estrutural têm trazido à família monogâmica, a “infidelidade” masculina, por exemplo, é muito mais tolerada que a feminina (até nos círculos revolucionários).

A Revolução Neolítica, pela qual se articularam trabalho excedente e carência, trouxe a sociedade de classes. O rápido desenvolvimento das forças produtivas que a sociedade de classes possibilitou conduziu a história da Antiguidade até ao mundo contemporâneo. (Sobre como se deu esse desenvolvimento, confira o artigo sobre as classes sociais no Jornal Espaço Socialista n. 77)

Contudo, um dos resultados desse mesmo desenvolvimento histórico é que a sociedade de classes criou seu próprio “coveiro”, na expressão de Marx.


O FUTURO DAS CLASSES SOCIAIS

O rápido desenvolvimento das forças produtivas terminou gerando a necessidade da superação das classes sociais pelo comunismo. Se antes, as sociedades de classe eram imprescindíveis para o desenvolvimento acelerado das forças produtivas, hoje são o principal obstáculo para esse mesmo desenvolvimento. Essa mudança fundamental na função histórica das classes sociais veio pela Revolução Industrial (1776-1830).

Desde o surgimento da humanidade até a Revolução Industrial (portanto, algo ao redor dos 100 mil anos) o trabalho era uma atividade que possuía um limite insuperável. Como era a força do músculo humano que movia a maior parte das ferramentas – o fato de termos herdado da natureza esse corpo, com dois braços e duas pernas, uma limitada capacidade de produção de energia, etc. – impunha um limite ao desenvolvimento das forças produtivas.

Esse limite foi superado com a Revolução Industrial. A entrada da máquina no processo de transformação da natureza em meios de produção e de subsistência faz com que, agora, o fato de termos duas pernas e dois braços não tenha mais tanta importância. A capacidade produtiva, evidentemente, teve um desenvolvimento explosivo e, pela primeira vez na história, podemos produzir mais do que necessitamos para atender a todas as necessidades de todas as pessoas no planeta: passamos da carência para a abundância.

Com a abundância, atendidas todas as necessidades de todos, ainda sobra para desenvolver as forças produtivas: a era da felicidade humana deveria ter chegado com a Revolução Industrial (veremos isso num artigo futuro), imaginou o maior filósofo da burguesia revolucionária, Hegel. Se a carência fazia de uma sociedade igualitária um entrave ao rápido desenvolvimento das forças produtivas, com a abundância esse entrave passa a ser a sociedade de classe, como vimos no Jornal Espaço Socialista n. 77 e retomamos agora.

A classe dominante precisa do mercado para acumular sua riqueza porque se não converter em dinheiro o que os trabalhadores produzem, a acumulação fica muito prejudicada (o trigo e o vinho estragam com o tempo etc.). Essa necessidade do mercado para a classe dominante sempre esteve presente ao longo do tempo, ainda que não da mesma forma e com a mesma intensidade.

O mercado é um complexo social que apenas funciona em presença da carência. Como o preço das mercadorias é influenciado pela oferta e pela procura, a carência garante preços elevados e a abundância derruba os preços abaixo do seu custo de produção. Antes, as crises eram sempre por falta de mercadorias, de comida, de dinheiro, etc., após a Revolução Industrial as crises são sempre de superprodução: o que falta é mercado, sempre se produz mais do que o necessário. A abundância, produzida pelas sociedades de classe, faz com que as forças produtivas não mais possam se desenvolver desimpedidamente, pelo contrário, de crise cíclica em crise cíclica chegamos, em meados de 1970, à crise estrutural. Isto é, as forças produtivas do capital apenas podem se desenvolver destruindo uma parcela cada vez maior da humanidade: entramos em um período histórico em que se instalou uma contradição antagônica entre as relações de produção capitalista e o desenvolvimento das forças produtivas humanas (confira também o artigo sobre Desemprego no Jornal Espaço Socialista n. 80).

Em poucas palavras: se as classes sociais surgiram e se desenvolveram – e se, hoje, vivem sua crise estrutural – é por razões históricas profundas, relacionadas com o desenvolvimento das forças produtivas. Surgiram porque eram historicamente necessárias para o acelerado desenvolvimento das forças produtivas. Vivem hoje sua crise estrutural e, se um dia, vierem a desaparecer, o farão pelo mesmo motivo:

Vejam: entre as forças produtivas desumanas do capital e as autênticas forças produtivas da humanidade instalou-se um antagonismo. Em nossos dias, ou o desenvolvimento das forças  o desenvolvimento das forças produtivas. A abundância trazida pela Revolução Industrial fere mortalmente a sociedade de classe. Por esse meio, o comunismo se transformou em uma necessidade para que possa prosseguir o desenvolvimento da humanidade e de suas forças produtivas. A sociedade de classes criou seu próprio “coveiro”, na expressão de Marx.

Portanto, nada mais falso que culpabilizar o egoísmo dos indivíduos pelas misérias do presente. O oposto é   verdadeiro: é a sociedade burguesa que nos desumaniza e nos faz mesquinhos.produtivas do capital destrói a humanidade ou esta destrói o capital. Esse o impasse histórico dos nossos dias e, aqui, não há meio termo.


LEITURAS RECOMENDADAS:

Dois textos de Engels são importantes: Do socialismo utópico ao científico A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Deste último, duas observações: os exemplos dados e históricos estão ultrapassados. Contudo, na edição da Expressão Popular há um posfácio interessantíssimo, de E. Leacock, que discute o que está ultrapassado e o que permanece válido nessa obra clássica.

Um texto de Marx e Engels, menos interessante porque não recebeu a forma final para publicaçãoe porque possu i alguns equívocos que vieram do pouco conhecimento da história dos dois autores naquele momento, é A ideologia alemã (primeira parte), cuja melhor edição é a da Expressão Popular.


E, também, o sempre fundamental Manifesto Comunista. De Lenin, O Estado e a Revolução é a retomada das teses de Marx e Engels contra os reformistas do início do século 20.

ALGUMAS LIÇÕES A PARTIR DA CONJUNTURA ATUAL

                                                              Por Ivo Tonet Introdução Como se pode ver, inúmeras e importan...