sábado, 30 de novembro de 2019

ALGUMAS LIÇÕES A PARTIR DA CONJUNTURA ATUAL





                                                             


Por Ivo Tonet


Introdução

Como se pode ver, inúmeras e importantes lutas estão sendo travadas em várias partes do mundo (Argélia, Iraque, Palestina, Líbano), mas especialmente na América Latina (Venezuela, Chile, Bolívia, Colômbia, Equador, Haiti). Algumas delas, de uma rara intensidade e com ampla participação das classes subalternas, como no Chile, na Bolívia, no Equador, na Colômbia e no Haiti. Em outros países, os embates ainda se desenrolam no âmbito eleitoral, como na Argentina e no Uruguai.

No entanto, nenhuma delas – como tônica - põe em questão o sistema como um todo, apenas a sua forma – neoliberal – mais perversa. Nenhuma delas põe como objetivo a superação radical do capital e do seu instrumento mais importante de manutenção - o Estado. Apenas exigem uma diminuição da desigualdade social, a vigência do sistema democrático e do chamado Estado de Direito. Sobrepondo-se a todos os outros, o problema fundamental, cotidianamente martelado por inúmeros intelectuais e organizações, num amplo espectro que vai do liberalismo a variadas posições de esquerda (em um sentido muito amplo), parece ser a preocupação com o sistema democrático. Ressoam, a todo momento os alarmes: a democracia está em vertigem, está sob ataque, está em tensão, está sendo ameaçada, etc.

Diante dessa situação, o exercício da razão é de fundamental importância. Uma análise séria não pode deixar-se levar apenas pela emoção. Também não basta denunciar e criticar os desmandos e as brutalidades das medidas adotadas pela burguesia. Certamente, a denúncia e a crítica são necessárias, mas totalmente insuficientes. É de capital importância buscar entender, à luz do materialismo histórico, o sentido dessas lutas. Não só as suas possibilidades, mas também, e de modo especial, os seus limites.

Valha deixar muito claro que não se trata de pretender ditar regras a partir do conforto de um escritório, mas de buscar extrair lições genéricas que possam contribuir para iluminar os caminhos das lutas futuras.

É nesse sentido que esse breve texto é escrito. Que lições – genéricas – podem ser extraídas dessas lutas que estão em andamento e que, no futuro próximo, tendem a se intensificar?
Gostaríamos de esclarecer, antes de entrar in medias res, que não pretendemos refletir de um ponto de vista da ”sociedade em geral”, de “um país” ou de uma “nação”, mas de um ponto de vista de classe, mais especificamente, do ponto de vista da classe trabalhadora, uma vez que entendemos que ela é, por sua natureza e pelos objetivos que dela brotam, a portadora dos interesses mais elevados da humanidade.

O que observamos?

Observando o panorama mundial, o que percebemos, de modo imediato?
Uma profunda crise do capital, que atinge todas as dimensões da vida humana – econômicas, políticas, sociais, educativas, jurídicas, culturais, artísticas, pessoais, etc.
Um enorme aumento da desigualdade social e uma intensa concentração de riqueza em poucas mãos, com o consequente cortejo de problemas sociais de toda ordem – miséria, pobreza, fome, racismo, feminicídio, homofobia, mercantilização e degradação dos serviços públicos, devastação da natureza, etc.

Uma grande intensificação das lutas sociais as mais diversas em várias partes do mundo.
Em resposta a essa profunda crise, observamos que estão sendo tomadas, pelos diversos governos, medidas que contribuem, de modo geral, para aprofundar ainda mais todos os problemas sociais. Como resposta à intensificação das lutas sociais, vemos um grande aumento da violência estatal e paraestatal, criminalizando e reprimindo essas lutas. A par disso, também percebemos uma tendência a avanços significativos de partidos de direita e de extrema direita não só em países periféricos, mas até em países de longa tradição democrática,

Também observamos que todas essas lutas não têm conseguido barrar os avanços da direita e até da extrema direita. Pelo contrário, estas têm se tornado cada vez mais fortes e mais agressivas.
Como se pode perceber, ainda, a tônica de todas as lutas sociais, de amplas massas, que se insurgem contra os efeitos perversos da crise atual, não tem sido posta na superação radical da desigualdade social – implicando a extinção do capital e do Estado - mas na defesa de direitos e melhorias já conquistados, do sistema democrático ou apenas na diminuição da desigualdade social. De modo geral, é contra o neoliberalismo que se volta a ira das amplas massas e não contra o capital. Por sua vez, no âmbito do que se pode chamar, em um sentido muito amplo, de esquerda, predominam duas posições: uma, que propõe levar cada país a se tornar soberano, independente e desenvolvido. Outra, que propõe chegar ao socialismo através do próprio “jogo democrático”. 

Buscando entender

Para não permanecer nesses aspectos fenomênicos, reais, mas que representam apenas a face mais imediata da realidade, é preciso, como nos indica o método histórico-materialista, começar pela busca das suas raízes materiais.

Tendo em vista que o trabalho é a categoria fundante do ser social, é forçoso, para entender a situação atual, começar pela forma específica do trabalho que funda a sociedade capitalista. Trata-se, portanto, de começar pela compreensão da natureza e da lógica do capital. Sabemos, desde Marx, que o capital se caracteriza por resultar da compra-e-venda de força de trabalho. Sua lógica implica uma acumulação constante e cada vez mais mundialmente expansiva. Essa acumulação, por sua vez, é acompanhada, sem que seja de modo linear, pelo crescente aumento da desigualdade social, pela concentração de riqueza em poucas mãos e por crises periódicas.

Na esteira de Mészáros, entendemos que a crise atual não é apenas uma das tantas crises que periodicamente afetam o capital, mas que se trata de uma crise que atinge até suas estruturas mais profundas. Uma crise estrutural. Como resposta a essa crise, o capital, através de seus operadores, reestruturou todo o processo produtivo, intensificou, no âmbito econômico, a exploração dos trabalhadores, a flexibilização, a precarização, a privatização e a mercantilização de empresas e serviços públicos, o consumismo, a financeirização e as políticas de austeridade fiscal. Além disso, nesse processo também se intensificaram as contradições entre as burguesias dos diversos países e entre frações burguesas no interior de cada país. No âmbito político, o Estado foi reconfigurado de modo a subordiná-lo mais diretamente aos interesses das classes dominantes. E, no âmbito social, ao tempo que eram suprimidos e/ou fragilizados muitos direitos e melhorias sociais duramente conquistados, algumas migalhas foram deixadas cair nas mãos das classes subalternas.

As consequências são bem conhecidas. Como apontado acima: um enorme incremento da desigualdade social, com o consequente cortejo de problemas sociais de toda ordem.
Diga-se, de passagem, que essa crise, com todas essas perversas consequências, não é resultado de alguma incapacidade de produzir riqueza suficiente para o atendimento das necessidades de todos os seres humanos. Pelo contrário, é pelo excesso de capacidade de produzir riqueza, porém sob a forma da propriedade privada capitalista.

Em termos das lutas sociais, revelaram-se duas grandes consequências: de um lado, as classes dominantes, tendo em vista a defesa dos seus interesses, se tornaram cada vez mais violentas, lançando mão, para esse fim, de todos os meios, violentos e/ou pacíficos, legais e/ou ilegais, democráticos e/ou ditatoriais. De outro lado, insurgindo-se contra as perversas consequências sociais acima mencionadas, as lutas das classes subalternas também se tornaram cada vez mais intensas. Cabe, porém, indagar: quais as suas possibilidades e os seus limites? Podem elas alterar substancialmente esse processo que aprofunda cada vez mais a desigualdade social? Podem opor-se à lógica perversa do capital e abria caminho para a construção de um mundo onde as necessidades de todos possam ser efetivamente atendidas? Se não podem, por que não podem e qual o caminho para alcançar esse objetivo?

O sentido das lutas sociais

Sem deixar de reconhecer a heterogeneidade dessas lutas, pode-se afirmar que a tônica de todas elas é, como já apontado inicialmente, a defesa de direitos e melhorias já conquistados, a reivindicação da diminuição da desigualdade social e a defesa do sistema democrático. Em nenhum momento a superação integral do capital e muito menos do Estado e a construção de uma sociedade comunista são postas como objetivos. Em resumo, busca-se uma sociedade mais igualitária, menos injusta e mais democrática. Mesmo quando se fala em socialismo, trata-se, na verdade, apenas, de uma ampliação do sistema democrático e da diminuição da desigualdade social, sem que isso implique uma ruptura radical com o capital.

Entre a maioria dos partidos de esquerda – em sentido muito amplo – vigoram, de modo geral, dois tipos de convicções. Por um lado, aqueles que apostam na possibilidade de levar, pelo caminho do desenvolvimento e da democracia, cada país a atingir o estatuto de que gozam os países do chamado primeiro mundo. Este é o caminho reformista: a conquista do desenvolvimento, da soberania e da independência. Por outro lado, aqueles que defendem o chamado caminho da reforma revolucionária, ou seja, uma trajetória que, através da participação no “jogo democrático”, tensionaria cada vez mais a relação entre capital e democracia orientando, assim, todo o processo em direção ao socialismo.
Mas, há, em todo esse processo, um elemento pouco ou nada mencionado e que também integra, de modo essencial, a caracterização da conjuntura atual. Trata-se da perda, pela esquerda, da perspectiva revolucionária. Um processo extremamente complexo, que teve seus inícios já em meados do s. XIX e que envolveu elementos objetivos e subjetivos. A nosso ver, o epicentro desse processo foi a perda ou o desconhecimento da centralidade, ontológica e política, do trabalho e sua substituição pela centralidade da política. O resultado foi que, no enfrentamento entre capital e trabalho, o reformismo e o politicismo se tornaram a tônica de todas as lutas. Desnecessário dizer que isto implicou enormes reformulações do pensamento revolucionário de Marx, eliminando dele suas características mais marcantes: seu caráter radicalmente crítico e sua perspectiva de uma transformação radical do mundo.

Desse modo, todas as lutas, inclusive as mais intensas, não têm como objetivo a superação radical do capitalismo, mas apenas a sua melhoria. De modo geral, luta-se apenas contra o neoliberalismo, que é somente uma expressão específica do capital e não contra o próprio capital. Do mesmo modo, não se luta para destruir o Estado, mas apenas para exigir dele medidas que melhorem a vida das classes subalternas. Expressão maior disso é o falso dilema que se faz entre ditadura e democracia, como se estas duas categorias se opusessem de forma antagônica. Não se percebe que ditadura e democracia são apenas formas políticas do capital, das quais ele lança mão na exata medida das suas necessidades. Olvida-se que a verdadeira oposição se dá, do ponto de vista econômico, entre capital e trabalho e, do ponto de vista político, entre ditadura e democracia de um lado e emancipação humana, liberdade plena, de outro.

Como se pode ver, examinando as últimas décadas, especialmente na América Latina, tivemos um ciclo de governos ditatoriais, seguido de um ciclo de governos democráticos. Recentemente, de novo, outro ciclo de governos de caráter autocrático, ainda que revestidos de formas democráticas. Com todas as diferenças que existem entre os processos que transcorreram, e ainda estão em curso, nessas últimas décadas, na Argentina, no Brasil, na Bolívia, no Chile, no Equador, no Haiti, em Honduras, no México, Paraguai e no Uruguai, há algo muito importante em comum. Trata-se das seguidas derrotas, frente a forças conservadoras e cada vez mais reacionárias, de projetos que se propunham a transformar em profundidade a realidade desses países. Seria de esperar, diante disso, uma autocrítica em profundidade, que buscasse as razões dessas derrotas. Bem ao contrário, como resumidamente afirmou Lula recentemente, referindo-se ao PT, mas podendo ser estendido a todos os outros partidos portadores desse projeto: “O PT não precisa fazer autocrítica”! Em todos esses casos, veem-se essas derrotas como interrupções de um projeto que precisa ser retomado. A luta é deslocada da relação capital versus trabalho, capitalismo versus socialismo para o terreno da democracia versus ditadura. Com isso, essa esquerda, mesmo diante de sucessivas derrotas e da intensificação das lutas sociais, continua apostando no “jogo democrático”. Não caberia perguntar: esses caminhos, que pretendem atingir o desenvolvimento ou o socialismo por intermédio do “jogo democrático”, são viáveis? Qual a sua fundamentação? Se não são, por que não são e qual seria, então, o caminho a seguir? A resposta séria a essas indagações implicaria o resgate da perspectiva revolucionária de Marx, especialmente a relação entre o momento ontológico e o momento histórico-social, coisa que foi abandonada há muito tempo por essa esquerda.

Três nos parecem ser os argumentos principais que embasam a posição reformista. Primeiro: a ideia de que não existe uma dependência ontológica entre capital e democracia. A democracia seria muito mais o resultado das lutas dos trabalhadores contra a burguesia do que o resultado, em essência, da lógica do capital. Daí porque ela, liberada dos entraves postos pelo capital, poderia propiciar a melhor forma possível – indefinidamente aperfeiçoável – da convivência humana. Segundo: a convicção, nascida da degeneração de todas as tentativas revolucionárias socialistas, de que o caminho revolucionário fatalmente levaria a formas ditatoriais. Terceiro: a crença na possibilidade de que, com políticas, especialmente econômicas, adequadas, se poderia alcançar o nível de desenvolvimento atingido pelos países do chamado primeiro mundo.

Esses três argumentos fundamentariam a aposta nesse caminho sintetizado na expressão atribuída a Lula: “Hoje nós ganhamos, amanhã perdemos, depois ganhamos de novo....essa é a beleza da democracia”!

Esses três argumentos, como já demonstramos em outros textos (O fim da democracia burguesa, Contra o reformismo e o politicismo), têm a aparência de verdade, mas são inteiramente falsos. O primeiro porque há, sim, uma dependência ontológica do Estado e, por consequência, da democracia moderna, em relação ao capital. Não se trata, evidentemente, de uma dependência absoluta, mas relativa. Em todo caso, real. Isso não invalida o fato de que a forma concreta da democracia é muito mais resultado da luta dos trabalhadores do que doação da burguesia. Todavia, na própria configuração do sistema democrático, como resultado da luta de classes, a burguesia sempre levou vantagem, organizando-o de modo a proteger, sempre, os seus interesses. Não há que ter ilusões: o verdadeiro poder não está na esfera do Estado, mas no âmbito da economia, no caso em tela, do capital. O poder político democrático não é proletário, é burguês. Sua função essencial é defender os interesses da burguesia, mesmo que para isso tenha que fazer concessões aos trabalhadores. Desse modo, fica claro que não há uma oposição de raiz entre capital e democracia, mas apenas conflitos oriundos da própria natureza conflituosa da sociedade burguesa. O aludido argumento revela uma profunda incompreensão da natureza essencial da realidade social. Ao invés de se partir do trabalho como categoria fundante do ser social e de qualquer uma de suas formas, parte-se da dimensão política, como se esta fundasse a sociedade como sociedade. Uma concepção claramente liberal.

O segundo argumento é igualmente falso. Que até hoje, todas as tentativas revolucionárias socialistas fracassaram, é um fato inquestionável. Deduzir disto que o socialismo é inviável e que toda tentativa sempre levará a formas ditatoriais é extrair dos fatos mais do que eles permitem. A única conclusão razoável seria de que, até hoje, de fato, todas as tentativas falharam e levaram a formas ditatoriais. Afirmar, a partir disso, a impossibilidade absoluta do socialismo, é um raciocínio totalmente falso e claramente ideológico. Trata-se, isso sim, em boa ciência, de buscar as razões do seu fracasso e não de tirar conclusões apressadas e ideologicamente interessadas. O argumento histórico não é suficiente para concluir da possibilidade ou impossibilidade do socialismo. Para isso é preciso recorrer a um argumento de caráter ontológico, isto é, à natureza essencial da realidade social. O que essa natureza permite concluir é que são os seres humanos e exclusivamente eles que fazem a história, em sua integralidade. E que todas as formas até agora efetivadas sempre tiveram uma determinada forma de trabalho como seu fundamento. Desse modo, nada obsta, em princípio, que os próprios seres humanos superem, pela raiz (a forma do trabalho) esta forma de sociedade – capitalista – e construam outra forma – socialista. Vale advertir que se trata tão somente de uma possibilidade e não de uma inevitabilidade.

O terceiro argumento é igualmente falso. À luz da formação, dependente e subordinada, dos países periféricos, cada um com a sua especificidade própria, e, mais ainda, à luz da atual crise estrutural do capital e da atual divisão internacional do trabalho, pode-se concluir taxativamente que o acesso de qualquer desses países ao status de “primeiro mundo” é totalmente impossível. Para que isso fosse possível, seria necessário que se tivesse formado um sujeito, isto é, uma burguesia nacional, suficientemente forte e interessada em levar a cabo tal empreitada. Ora, nenhuma burguesia, de qualquer desses países, tem interesse em liderar o que seria a realização plena da revolução burguesa. Todas elas se encontram em uma situação tão dependente, subordinada e associada em relação às burguesias dos países centrais, mormente dos Estados Unidos, que não tem o menor interesse nem a capacidade de enfrentar as tarefas que seriam necessárias. Espasmos ou veleidades de independência e soberania, como tem se verificado na América Latina e em várias outras partes do mundo, são imediatamente esmagados pelo imperialismo.
Contrariando os argumentos acima mencionados em favor do caminho reformista, os fatos históricos também demonstram fartamente a impossibilidade desta via. Inúmeras foram as tentativas de trilhar o caminho da transformação de países periféricos em nações soberanas e independentes. Nenhuma teve sucesso.

Quais os argumentos que sustentam o politicismo, isto é, a proposta de confiar ao Estado, supostamente a favor ou em mãos dos trabalhadores, a tarefa de capitanear o processo em direção ao socialismo?

Vale lembrar, antes de mais nada, que todo reformismo é politicista, mas nem todo politicismo é reformista. Entendemos por politicismo a proposta de atribuir ao Estado a tarefa de dirigir a luta contra o capital de modo a realizar não apenas reformas, mas uma verdadeira ruptura com o capital.
Argumentam, os que assim pensam, que o Estado – que seria um Estado dos trabalhadores – seria um instrumento absolutamente necessário para dirigir a luta contra a burguesia. Cremos que essa afirmação padece de uma confusão entre poder político estatal e poder político não estatal. O poder político estatal, como sabemos desde Marx e Engels, é um corpo separado da sociedade, que surgiu com a propriedade privada e que foi configurado pelas classes dominantes. Sua função essencial é a defesa dos interesses dessas classes. Isto vale inclusive para o poder político que for exercido pelos trabalhadores. Todavia, há uma enorme diferença entre esses dois tipos de poder político. O primeiro é constituído por um corpo separado da sociedade e que exerce o domínio sobre ela, embora sempre a serviço dos interesses dos proprietários privados. O segundo, aquele exercido pelos trabalhadores, não será um corpo separado dos próprios trabalhadores, mas exercido sob seu controle direto. Uma revolução proletária só poderá ter sucesso se o poder político não se transformar em um corpo separado com poder de dominar os trabalhadores e o conjunto da sociedade. Por isso mesmo, Marx, ao analisar a Comuna de Paris afirma taxativamente que a classe operária tem que destruir o Estado burguês e retomar para si o poder político do qual foi expropriada, em geral, com o surgimento da propriedade privada e, de modo específico, com a propriedade privada de tipo capitalista. Repetimos: o Estado burguês deve ser destruído e não tomado e nem simplesmente modificado para estar a serviço dos trabalhadores. Vale, porém, lembrar que esta não é uma decisão subjetiva, mas uma imposição da própria realidade. Sem a destruição do Estado, principal sustentáculo da dominação burguesa é impossível abrir caminho para as transformações estruturais – de modo especial, a substituição do trabalho assalariado (produtor de valores de troca) pelo trabalho associado (produtor de valores de uso) que deverão fundar uma sociedade comunista.

Contrariando essa argumentação politicista, os fatos históricos têm demonstrado, à saciedade, que este caminho também é inviável. O caminho apontado pela realidade social, tanto no sentido ontológico, como no sentido histórico, implica a articulação entre a destruição do Estado burguês, a reabsorção do poder político pelo conjunto dos trabalhadores e as transformações substantivas no processo produtivo.

Lições

Que lições podemos tirar dessas constatações? Pensando sempre do ponto de vista dos interesses mais essenciais dos trabalhadores, em primeiro lugar, que, pelas razões acima apontadas, tanto o caminho reformista quanto aquele politicista, apesar de sua aparência de possibilidade, são absolutamente inviáveis. Infelizmente, hoje, a aparência de inviabilidade do comunismo e a aparência de viabilidade do reformismo e do politicismo são tão fortes que a maioria da esquerda (sempre em um sentido muito amplo) aposta nesses últimos caminhos, especialmente no primeiro. Basta ver o que acontece no Brasil, na Argentina, na Bolívia, no Uruguai, no Equador, na Colômbia, na Venezuela e em todos os outros países onde se desenrolam, no momento, fortes lutas populares. Todas elas têm como inimigos o neoliberalismo e o Estado repressor, mas não o capitalismo e, muito menos, o Estado em geral. Mesmo quando põem como fim o socialismo, pretendem que ele seja construído sob a direção do Estado. Daí a importância da crítica a esses caminhos, esclarecendo a natureza e a dinâmica do capital e suas perversas consequências tanto em relação à sociedade quanto em relação à natureza, a sua incontrolabilidade, a impossibilidade da sua humanização e a necessidade e a possibilidade da sua superação. Do mesmo modo, o esclarecimento acerca da origem, da natureza e da função social do Estado como instrumento sempre voltado à defesa dos interesses particulares das classes dominantes. Isto implica, também, a demonstração de que a formação dos países periféricos, em especial, da América Latina e, ainda mais especialmente, do Brasil seguiu uma trajetória tal que impossibilita, hoje, qualquer veleidade de se tornarem soberanos e independentes. Argumentam, muitas vezes, os defensores dos caminhos acima citados, que é melhor um governo de uma esquerda democrática do que um de direita e, mais ainda, ditatorial. Esquece, quem assim argumenta, a lógica do capital. Esta, como vimos, tende a aprofundar cada vez mais a desigualdade social e, com isso, obriga qualquer governo a fazer o que for necessário para preservar os interesses das classes dominantes. A parte que será destinada às classes subalternas sempre será constituída de migalhas. Além disso, a defesa dos interesses das classes dominantes face às rebeliões, que acontecerão mesmo com governos democráticos, exigirá de qualquer governo medidas repressivas cada vez mais intensas. Isso levará, fatalmente, a um desgaste cada vez maior de qualquer governo democrático, como se pode ver em inúmeros países latino-americanos. A curto prazo, a desilusão das massas com a impossibilidade de atender os seus reclamos pavimentará o caminho para governos ditatoriais – abertos ou encobertos – que prometerão resolver os problemas por meio da força. É o que temos presenciado seguidamente. A aposta nos caminhos reformista e politicista se revela, mais cedo ou mais tarde, um tiro no pé. Com brutais consequências para as classes subalternas.

Por isso mesmo, a segundo lição é de que o único caminho para uma solução positiva dos problemas que afligem a humanidade é a superação radical do capitalismo, pois sua natureza e sua dinâmica são os responsáveis fundamentais por eles. Como já vimos, o capital é incontrolável e sua humanização, impossível. Positivamente, a superação radical do capitalismo significa a construção de uma sociedade comunista. Infelizmente, com a perda da perspectiva revolucionária e o fracasso de todas as tentativas nesse sentido até hoje realizadas, a ampla maioria dos trabalhadores, mesmo daqueles que se indignam com as perversidades do capitalismo, têm uma ideia profundamente deformada do que seja comunismo e por isso não o colocam como objetivo maior. Preferem apostar em um objetivo aparentemente possível, mas, de fato, impossível, ou seja, a humanização do capitalismo, do que em um objetivo possível, mas que as aparências parecem caracterizar como impossível, o comunismo. Daí a importância da agitação e da propaganda para esclarecer a natureza e o significado de uma sociedade comunista. E, além disso, de fundamentar, de modo sólido e acessível, a possibilidade de uma tal sociedade. Afinal, as pessoas só lutam por algo em que acreditam.

Em terceiro lugar, e como decorrência dos anteriores, que, para atingir os dois fins acima propostos – a superação radical do capitalismo e a construção de uma sociedade comunista – a revolução dos trabalhadores é uma mediação inescapável. Infelizmente, por circunstâncias históricas, a ideia de revolução foi profundamente deformada, resumindo-se, essencialmente, ao seu momento político. Valha, então, esclarecer que, por evolução, entendemos, como elemento essencial, a eliminação da base material do capitalismo – o trabalho assalariado – e sua substituição pela base material do comunismo – o trabalho associado. Para isso, como apontado por Marx em A Guerra Civil na França, a destruição do Estado é conditio sine qua non.  Só assim os trabalhadores poderão realizar as transformações econômicas necessárias à construção da base material do comunismo e, por consequência, e em determinação recíproca com todas as outras dimensões da vida social, a configuração de uma sociedade plenamente humana.

Em quarto lugar, que o eixo das lutas sociais deve ser situado fora do parlamento e não dentro dele. Não se trata, de modo nenhum, de menosprezar e/ou desqualificar as lutas no interior do parlamento, mas de subordiná-las às lutas extraparlamentares. Mais ainda: situar o eixo das lutas fora do parlamento não significa apenas dar ênfase às lutas fora dele, mas que essas próprias lutas não desemboquem no parlamento. E, ainda mais: que essas lutas que, de modo geral, têm objetivos particulares, sejam articuladas com a luta mais geral pela superação do capital e do Estado e pela construção de uma sociedade comunista.

Em quinto lugar, que é de capital importância resgatar, teoricamente, a perspectiva revolucionária. Considerando o rebaixamento e as deformações que esse horizonte sofreu ao longo da luta entre capital e trabalho, essa tarefa assume uma importância difícil de enfatizar. Para isso, o estudo sério da obra de Marx é imprescindível. Por óbvio, seja dito que não se trata de estudar só Marx, mas também os outros clássicos do pensamento revolucionário e, seguindo o próprio exemplo de Marx, muitos outros autores, mesmo que não marxistas. Desse modo, não se trata de estudar só Marx, mas de estudar qualquer objeto e qualquer autor a partir dos pressupostos teórico-metodológicos instaurados por Marx. Pela simples razão de que os fundamentos da concepção de mundo – radicalmente nova – e do padrão científico – também radicalmente novo - por ele instaurados, ao responderem aos interesses mais profundos e de caráter universal da classe trabalhadora, são os que melhor permitem compreender a realidade social. Nesse sentido, vale lembrar que não se trata de nenhuma devoção a Marx. Trata-se, sempre, de ter como referência o processo real, pois também para ele, esse era o critério para aferir a verdade de qualquer teoria.

Em último lugar, mas não o menos importante, que a esquerda, se quer ser revolucionária, não pode ser ingênua. Tem que se preparar para enfrentar os mais duros embates, inclusive armados. As classes dominantes sempre deixaram e ainda continuam a deixar claro que estão dispostas a lançar mão de todos os meios – lícitos ou ilícitos, pacíficos ou violentos, legais ou ilegais, democráticos ou ditatoriais – para defender os seus interesses. A crueldade delas não tem nenhum limite. Basta olhar para a história. Paga-se um alto preço quando se esquece a luta de classes em todas as suas dimensões, com toda a sua brutalidade. Nenhum vezo humanístico, liberal, democrático ou civilizado impedirá a burguesia de lançar mão de todos esses meios na defesa dos seus interesses. Cabe à esquerda revolucionária optar pela ilusão ou pela realidade. Vale lembrar que o uso da violência não é uma questão subjetiva. A sociedade burguesa é violenta pela sua natureza. As formas da violência podem variar, mas ela sempre estará presente. A matriz da violência, nessa sociedade não se encontra nem no Estado nem nos órgãos repressivos. Encontra-se na fábrica. De lá é que ela se espraia para toda a sociedade. Desse modo, imaginar que se podem enfrentar todas as formas de violência dessa sociedade apenas com flores e disposições pacifistas é uma tremenda ingenuidade que se paga muitíssimo caro.

À guisa de conclusão

A roda da história, feita girar pela dinâmica do capital, anda cada vez mais depressa. Os problemas da humanidade são cada vez mais graves, prementes e ameaçadores. Urge enfrentá-los com radicalidade. A nosso ver, não existem três alternativas. Apenas duas. Como já foi dito e redito: socialismo ou barbárie. E não existem dois caminhos para enfrentar e resolver positivamente esses problemas. Apenas um: a transformação radical do mundo, a superação integral do capitalismo.


Referências bibliográficas
MARX, K. A guerra civil na França. São Paulo, Boitempo, 2011
____, Glosas críticas marginais ao artigo O Rei da Prússia e a Reforma Social. De um prussiano. São Paulo, Expressão Popular, 2010
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo, Boitempo, 2006
LESSA, S. O que é o socialismo. In: sergiolessa.com
TONET, I. Sobre o socialismo. São Paulo, Instituto Lukács, 2012
_____, Estudar Marx. In: ivotonet.xp3.biz
_____, Descaminhos da esquerda – da centralidade do trabalho à centralidade da política. São Paulo, Alfa/Ômega, 2009
_____, Contra o reformismo e o politicismo.  In: ivotonet.xp3.biz
_____, O fim da democracia burguesa. In: Novos Rumos, v. 55, n. 2, (2018)
_____, Trabalho associado e revolução proletária. In: ivotonet.xp3.biz
_____, Trabalho associado e extinção do Estado. In: ivotonet.xp3.biz
















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