terça-feira, 15 de agosto de 2017

Emancipação política: ampliá-la ou superá-la?




Rafael Rossi

É muito comum, no debate contemporâneo inerente à perspectivas de diversas matizes ideológicas, a defesa da cidadania como ponto fundamental a ser aperfeiçoado no que diz respeito às várias lutas sociais. Em diversos aspectos, presenciamos a tentativa de perfectibilização, num amplo rol de discursos, da cidadania moderna como forma insuperável de sociabilidade e, por isso mesmo, nos restaria apenas “alargá-la”, lutar pela sua ampliação e jamais a sua superação, pois neste caso, estaríamos caindo num retrocesso histórico gigantesco e, justamente por isso mesmo, deveríamos nos empenhar no sentido de reformá-la ao máximo possível.

Entretanto, entendemos que se queremos, efetivamente, compreender as bases da cidadania moderna para além das inúmeras definições que vários autores possuem em seus mais distintos posicionamentos teóricos e ideológicos, é preciso buscar a sua gênese, o seja, rastrear as suas origens no processo histórico, bem como analisar a sua função na reprodução da sociedade. Procedendo dessa forma, poderemos ter como parâmetro de análise a própria realidade objetiva em sua processualidade histórica e não a subjetividade deste ou daquele autor.

Num rápido panorama mais do que breve, podemos constatar, na esteira de Marx e Engels em A Ideologia Alemã, que o primeiro ato histórico dos seres humanos é a produção das condições materiais da existência social.

A vida social não é simplesmente nos dada por uma dádiva da natureza. Ao contrário, os seres humanos, enquanto uma condição ineliminável de sua sobrevivência, precisam, continuamente, transformar a natureza de modo conscientemente intencional e produzir os bens materiais necessários ao atendimento de suas necessidades sociais. Com efeito, as relações que os homens estabelecem entre si no processo de produção da riqueza material, por meio da transformação da natureza, constituem as relações sociais de produção.

Este entendimento é fundamental em nosso debate pois, analisando o conjunto do processo histórico tendo como fio condutor o trabalho (nesse sentido apontado de transformação da natureza para a produção de valores de uso) é possível apreender que cada modo de produção, ou seja, cada formação social específica, terá como fundamento uma determinada forma típica de trabalho. Não se trata, contudo, de resumir a realidade social ao trabalho. Certamente várias outras dimensões interagem entre si e influenciam e são influenciadas pelo próprio trabalho, como por exemplo a educação, a arte, a política, a ciência, a filosofia, etc. Porém, todas estas dimensões sociais, possuem como fundamento histórico essencial o fato de só poderem existir em decorrência da capacidade humana de efetivar atos de trabalho.

Desse modo, cada sociedade terá uma totalidade social própria que será matrizada, isto é, fundada, por um determinado tipo de trabalho. Se queremos compreender, com base na história, a função social que a cidadania possui, devemos voltar nossa investigação no processo plurisecular de transição do feudalismo ao capitalismo. Uma vez que o comércio se desenvolveu substancialmente, as terras ficaram cada vez mais desgastadas, os servos foram expulsos dos feudos, os conflitos entre burguesia e nobreza se acirraram e, de modo geral, as relações sociais de produção feudais entraram em crise, as bases para o surgimento do capitalismo se acentuaram e, cada vez mais, passaram a se consolidar.

Impossível aqui deixar de mencionar a importância da Revolução Industrial e da Revolução Francesa. A primeira, como atestam vários escritos de S. Lessa, I. Tonet dentre outros, representa um salto qualitativo de enorme importância para a história da humanidade. Durante todo o feudalismo a produção da riqueza social encontrava um limite inerente aos próprios limites da força física humana. Se somarmos a riqueza produzida por todos, o resultado ainda era insuficiente para atender plenamente todas as demandas e necessidades existentes entre os seres humanos. Com a Revolução Industrial, pela primeira vez na história, é possível produzir, de modo geral, todos os bens necessários para satisfazer as aspirações humanas. A carência enfim é superada pela abundância.

Um comentário antes de avançarmos: afirmar que a carência é enfim superada pela abundância com a Revolução Industrial de modo algum indica qualquer tipo de devaneio ou ingenuidade. Ao contrário. Apenas um exemplo para dar concretude ao que estamos afirmando: a produção atual de alimentos dá conta de 12 bilhões de pessoas (quase o dobro da população mundial contemporânea). Ainda assim a cada 5 segundos uma criança morre de fome no mundo, existem mais de 01 bilhão de obesos, mais de 01 bilhão de subnutridos e mais de 01 bilhão de toneladas de alimentos são desperdiçadas.
Uma análise apressada e não preocupada com o processo histórico real, afirmaria que o problema está na má distribuição dos alimentos, mas será isso mesmo? Porque será que tamanha desigualdade ocorre?

Agora sim, para entendermos melhor essas questões temos de voltar à Revolução Francesa. Esta revolução burguesa, junto à possibilidade real e concreta de superação da carência como explicamos anteriormente, permitiu (junto a outros processos) o avanço das condições indispensáveis para a constituição das relações sociais de produção capitalistas e, portanto, a consolidação do trabalho assalariado. A bandeira de “igualdade, liberdade e fraternidade” constitui um ilustrativo emblema da nova sociedade, justamente por representar os fundamentos mais genéricos da cidadania.

Os trabalhadores precisam ser livres para venderem a sua força de trabalho (e os capitalistas para comprarem a força de trabalho que julgarem mais capacitada); os trabalhadores precisam ser proprietários basicamente apenas de sua própria força de trabalho (e os capitalistas os proprietários do capital) e, ainda, ambos (trabalhadores e capitalistas) precisam ser iguais do ponto de vista jurídico-formal. Trata-se, entretanto, de uma igualdade formal fundada a partir de uma desigualdade real, pois o Estado ao permitir jurídica e legalmente que o capitalista extraia a mais-valia do processo de produção das mercadorias, garante uma liberdade muito maior ao capitalista e ratifica a raiz das desigualdades sociais na sociabilidade capitalista.

Fica compreensível, portanto, porque toda a riqueza produzida pelo avanço das forças produtivas no capitalismo não pode ser igualmente distribuída. A distribuição é determinada essencialmente pelas relações sociais de produção, o que significa que a distribuição atua dentro dos limites e das possibilidades efetivados pela produção. Como as relações sociais de produção capitalistas tem como objetivo o lucro, a produção de mais-valia e a reprodução do capital, a distribuição também será impactada profundamente por esta desigualdade que emana da produção capitalista.

Para que o capitalismo possa existir são necessárias algumas condições construídas historicamente: 1) uma radical separação entre os trabalhadores e a propriedade dos meios de produção; 2) A força de trabalho precisa estar disponível no mercado para ser vendida e comprada como qualquer outra mercadoria; 3) todos precisam ser cidadãos e, 4) a mais-valia, agora, passa a ser extraída do processo de produção das mercadorias. Com todas essas características que surgem a partir da consolidação do trabalho assalariado, podemos entender que o processo de emancipação política do capital, com relação às amarras inerentes aos modos de produção anteriores, certamente representou um avanço histórico completamente perceptível.

Todavia, de modo algum, ampliar a cidadania é sinônimo de caminharmos rumo ao socialismo. O que funda cada forma de socialidade é o trabalho e suas correspondentes relações sociais de produção e não a esfera da política. A cidadania está dentro do campo de limites e possibilidades da totalidade social capitalista fundada no trabalho assalariado. Ampliar a cidadania, querer alargá-la ou aperfeiçoá-la indica, simplesmente, lutar por mais capitalismo e, portanto, pela continuação da exploração do homem pelo homem com todas as desigualdades inerentes ao sistema do capital. A verdadeira questão, sob o interesse do trabalho, não é o cidadão em seu ser fragmentado, mas o homem em seu efetivo social no desafio histórico de construção da emancipação humana.


Sugestão de estudos: De Marx e Engels sugerimos o “Manifesto do Partido Comunista”. De Sérgio Lessa e Ivo Tonet sugerimos “Proletariado e Sujeito Revolucionário”. De Leo Huberman é muito importante a leitura de “História da Riqueza do Homem” e de Ernst Mandel seu clássico “Introdução ao Marxismo”.

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